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Passamos por Cá

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A Time Out diz

4/5 estrelas

“O que é que aconteceu à semana de oito horas?”, perguntam a certa altura de Passámos por Cá, o novo filme de Ken Loach, a Abbie Turner, a mulher do protagonista. A resposta é simples: a semana de oito horas é ficção para Abbie e para o marido, Ricky. A deles tem seis dias de trabalho, isso sim.

Ela cuida, com enorme carinho e paciência, de idosos e doentes acamados. Anda todo o dia metida em transportes públicos e a deixar mensagens de voz ao filho e à filha para não se esquecerem de fazer os deveres, saberem onde está o jantar e não passarem tempo demais ao computador ou a verem televisão.

Ele, farto de empregos temporários
 e de trabalhar com gente preguiçosa ou incompetente, decidiu estabelecer-se por conta própria, ser o patrão de si mesmo. Por isso, convenceu a mulher a vender o carro para comprar uma carrinha e começar a entregar encomendas em sistema de franquiado para uma empresa especializada. Só que Ricky apenas na aparência é o “senhor do seu próprio destino” e não trabalha “para” a empresa e sim “com” ela.

É que o sistema de franquia que subscreveu, embora o faça ganhar bom dinheiro, não lhe dá qualquer rede protectora. E submete-o a um sistema de multas e penalizações se falhar entregas, não cumprir os objectivos ou faltar ao trabalho por um qualquer imponderável pessoal ou problema familiar. E se perder ou estragar o caríssimo scanner que tem que levar sempre consigo, que o submete a uma monitorização contínua pelo escritório e pelo cliente, e que é o seu verdadeiro patrão, tem que o pagar.

Escrito como sempre por Paul Laverty, Passámos por Cá dá-nos o aflitivo e inglório espectáculo de uma família enredada em dívidas, e que quanto mais se esforça para se ver livre delas, mais acumula. Não é por acaso que Abby tem um pesadelo recorrente em que se está a afundar em areias movediças.

À desumana carga de trabalho que pai e mãe suportam, vêm juntar-se problemas com os filhos. O mais velho, Seb, outrora um aluno aplicado e cumpridor, falta às aulas para ir tagar paredes com os amigos, vive curvado sobre o telemóvel e responde mal aos pais. A mais pequena, Lisa Jane, miúda ajuizada e aluna exemplar, dorme mal e molha a cama por causa das discussões cada vez mais regulares entre o pai e a mãe, e das fricções cada vez mais violentas entre o irmão e o pai. Sem tempo para descansar e dar aos filhos, Ricky e Debbie estão em maré alta de desespero e a família ameaça afogar-se em gritaria e lágrimas, e não só em dívidas.

Logo que, no início do filme, sabemos 
das dificuldades monetárias dos Turner 
e ouvimos Maloney, o emperdenido supervisor de Ricky ditar-lhe as condições de trabalho, percebemos que Passámos por Cá só pode acabar mal. Até porque o filme “reconfortante” não faz o género de Ken Loach, o último representante de um cinema britânico de intervenção política radical e de realismo social sem paninhos quentes.

No seu pior, Loach é demagógico, tendencioso e simplista. No seu melhor, como no filme anterior, Eu, Daniel Blake, sobre um homem extraviado nos absurdos da burocracia estatal, e neste Passámos por Cá, é frontal, justo e justificadamente indignado. Loach envolve-nos na vida de Ricky, Abby e dos filhos (o óptimo elenco mistura actores com tarimba, como Kris Hitchen, o pai, e amadores ou estreantes) e faz-nos acreditar nas personagens e preocuparmo-nos com elas, sem mendigar a nossa compaixão nem recorrer a golpes baixos melodramáticos ou truques narrativos espertalhufos.

No final, e apesar de ter sido destratado pelo supervisor, mordido por cães, insultado por clientes e agredido e humilhado por ladrões, Ricky acaba quebrado por uma máquina. A máquina que tinha de manter sempre “feliz”, como condição da sua própria felicidade, e da sua família.

Por Eurico de Barros

Escrito por
Eurico de Barros

Detalhes da estreia

  • Duração:100 minutos

Elenco e equipa

  • Realização:Ken Loach
  • Argumento:Paul Laverty
  • Elenco:
    • Kris Hitchen
    • Debbie Honeywood
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