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O Homem que Matou Dom Quixote

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The Man Who Killed Don Quixote
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A Time Out diz

3/5 estrelas

Quando, em 1989, Terry Gilliam leu Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, e começou logo a trabalhar num filme baseado no livro, não fazia a menor ideia de que o projecto, O Homem que Matou Dom Quixote, ia demorar quase 30 anos a ser concretizado, que a produção ia sofrer todo o tipo de desastres e problemas possíveis, desde uma inundação em Espanha, no ano 2000, que destruiu parte do set, até vicissitudes financeiras e legais (Gilliam, aliás, continua em litígio com Paulo Branco, um dos últimos produtores associados ao filme, em parte rodado em Portugal), e a morte de dois dos actores principais: Jean Rochefort, a primeira escolha do realizador para Dom Quixote, na versão em que Johnny Depp o iria coadjuvar, e de John Hurt, que em 2014 substituiu Robert Duvall como Quixote.

Além daqueles, entre os muitos actores associados ao filme ao longo dos anos, estiveram ainda John Cleese, Michael Palin (ambos companheiros de Gilliam nos Monty Python), Nigel Hawthorne, Danny DeVito, Miranda Richardson, Gérard Depardieu e Ewan McGregor. No mundo do cinema, O Homem que Matou Dom Quixote tornou-se um sinónimo de filme perdido naquilo a que em Hollywood se chama de “development hell”, e sobre ele foram rodados dois documentários, ambos da dupla Keith Fulton e Louis Pepe: Lost in La Mancha (2002) e He Dreams of Giants (2019).

“Eu estava possuído pelo espírito de Dom Quixote. Cada vez que ele tenta fazer alguma coisa difícil, falha e cai. Mas levanta-se sempre. O problema era esse. Quando não conseguia retomar o filme, ia fazer outra coisa, voltava, e lá estava o Quixote a dizer-me: ‘Olá! Então, como é?’”, contou Terry Gilliam à Time Out em Lisboa, onde esteve há dias a promover o filme. “Consegui finalmente rodá-lo porque tinha o Adam Driver. Não foi por causa do Jonathan Pryce ou de mim. Foi porque o Adam era o actor na berra. Temos que ser muito pragmáticos. Os realizadores são tratados como se sabe e os meus últimos filmes não fizeram dinheiro, por isso, pelo meu lado, não ia entrar nada. Tinha o Jonathan, que tinha sido nomeado para um Óscar, o que melhorava um bocadinho as hipóteses de arranjar financiamento. E depois apareceu o Adam. Por o ter é que o filme foi feito.”

É inequívoca a dimensão quixotesca que rodeia O Homem que Matou Dom Quixote, onde Adam Driver interpreta Toby Grummett, um outrora promissor cineasta que escolheu o muito mais lucrativo e confortável mundo da publicidade. Toby está de volta à vila espanhola onde dez anos antes fez o seu primeiro filme como estudante de cinema, sobre Dom Quixote, agora para rodar um anúncio. Num intervalo das filmagens, descobre que o velho sapateiro (Jonathan Pryce) que interpretou Dom Quixote no seu filme de estudante ficou possuído pela personagem e julga mesmo ser o Cavaleiro da Triste Figura criado por Cervantes. Vendo em Toby o seu Sancho Pança, ele arrasta-o para uma aventura demencial que vai envolver ainda o inescrupuloso dono da agência de publicidade (Stellan Skarsgard) para a qual aquele trabalha, a sua mulher ninfomaníaca (Olga Kurylenko), e a rapariga da vila que interpretou Dulcineia dez anos antes (Joana Ribeiro) e é agora a amante de um rico mafioso russo, que vai dar uma grande festa de temática medieval num castelo que alugou.

O Homem que Matou Dom Quixote, que Gilliam escreveu com o seu colaborador Tony Grisoni, não tem o rasgo imaginativo nem a opulência fantasista de outros títulos do realizador, como Os Ladrões do Tempo, Brazil: O Outro Lado do Sonho ou A Fantástica Aventura do Barão, e é, aliás, um dos seus filmes mais realistas, bem como menos exuberantes em termos estilísticos. Mas permite a Gilliam explorar, através das personagens opostas de Quixote e de Toby, temas que lhe são queridos desde sempre, como o conflito entre o sonho e a realidade, o pragmatismo e a imaginação; e pôr em cena personagens que desafiam os limites da realidade, seja por vontade própria, seja pela auto-ilusão ou pela loucura, arrastando outros com eles. Como diz o realizador: “É por isso que eu adoro o Quixote e o Sancho, eles representam os dois lados do ser humano. Precisamos de ser imaginativos mas também práticos. E eu sou ambas as coisas porque faço filmes, e os filmes são coisas complicadas e caras de fazer. Tenho um lado prático e um lado artesanal. E depois tenho o lado maluco e estes sonhos que quero concretizar.”

Como se poderia esperar de Terry Gilliam, e apesar do seu título, O Homem que Matou Dom Quixote não é uma desconstrução nem um questionamento crítico da personagem de Cervantes, como agora está na moda fazer aos clássicos da literatura ou às suas figuras mais célebres. Tudo pelo contrário, já que no final, Toby, depois de ter sido punido por ter vendido o seu talento à publicidade (que Gilliam detesta fazer, aproveitando aqui também para fustigar este meio), dá continuidade a Dom Quixote e ao seu mito, agora acompanhado por um Sancho Pança no mínimo original, proporcionando ao realizador rematar a fita num registo fantástico tipicamente gilliamesco. “O Quixote nunca morre. Porque ele é um espírito, uma ideia, que continua sempre, que é sempre renovada. Vai sempre haver um novo Quixote por aí, algures”, explica Terry Gilliam. Para fechar a conversa, o realizador acrescenta ainda: “Ao contrário do Orson Welles, que nunca conseguiu concluir o seu Dom Quixote, eu acabei o meu. Ao menos, consegui fazer algo em que ele falhou.”

Escrito por
Eurico de Barros

Detalhes da estreia

  • Classificação:15
  • Data de estreia:sexta-feira 31 janeiro 2020
  • Duração:132 minutos

Elenco e equipa

  • Realização:Terry Gilliam
  • Argumento:Terry Gilliam, Tony Grisoni
  • Elenco:
    • Adam Driver
    • Jonathan Pryce
    • Olga Kurylenko
    • Stellan Skarsgård
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