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Aos 67 anos, o americano-canadiano Robert Angel é mais um entre muitos estrangeiros a gozar da reforma em Cascais. A morar há um par de anos na vila, a grande diferença é que, embora passe despercebido na rua, como qualquer outra pessoa, Angel criou um dos mais famosos jogos de tabuleiro de sempre, o Pictionary – no qual se tentam adivinhar palavras através de desenhos, com um limite de tempo.
Tudo começou no início dos anos 1980, quando Robert Angel era um jovem acabado de sair da faculdade, a trabalhar como empregado de mesa num restaurante. Um jogo informal que fazia com os colegas de casa depois do trabalho acabou por se tornar rapidamente na sua profissão e num negócio de milhões de dólares. Já sendo um fenómeno internacional há vários anos, em 2001 o Pictionary foi comprado pela segunda maior empresa do planeta de brinquedos e jogos, a Mattel.
Na sua primeira entrevista desde que se mudou para Portugal, Robert Angel explica à Time Out o que o atraiu em Cascais, recorda a história (e os detalhes mirabolantes) da invenção do Pictionary e partilha episódios tocantes relatados por jogadores de todo o mundo.
Porque quis mudar-se para Portugal?
Já tinha visitado algumas vezes, tenho um amigo muito próximo que vive aqui há muitos anos. E foi natural, senti-me em casa. Vim visitá-lo uma vez e pensei: "bem, é isto." Vivi nos EUA a minha vida toda, mas sempre quis viver na Europa. E em Portugal e em Cascais gostei das pessoas, o clima é óptimo, gosto do ritmo mais lento. Se quiser um pouco mais de energia, vou a Lisboa, que é muito perto. Aqui gosto de andar a pé.
O que é que mais gosta de fazer em Cascais?
Faço muitas caminhadas. Gosto de estar na vila, sendo um americano. Tenho um grupo de amigos, de expats, às quartas-feiras tentamos encontrar o sítio mais barato, pequeno e escondido que conseguirmos. Sabes, um almoço com vinho que não passe dos 15€. Divertimo-nos muito, tem sido uma óptima forma de conhecer os sítios mais pequenos. Mas também vou a outros, sou um grande fã do Bougain, foi o primeiro restaurante que encontrei aqui. E agora a minha base tem sido o Corleone, com aquela vista e localização. Estar no deck do Corleone é uma das minhas coisas favoritas.
Vamos então mergulhar na história que o tornou conhecido: a invenção do hoje mundialmente famoso jogo de tabuleiro Pictionary. Sei que o jogo começou de maneira muito descomprometida, consigo e uns amigos, e que na altura trabalhava como empregado de mesa. Mas como é que começou a desenvolver o jogo a sério? Já era um fã de jogos de tabuleiro?
Nem por isso. Bem, eu terminei a faculdade e tinha 22 anos. Sem emprego, sem dinheiro, sem futuro. Fiz um curso de gestão, de administração de empresas, muito genérico – sempre quis estar no mundo dos negócios mas não sabia o que ia ser. E, quando terminei a faculdade, fui morar com três amigos em Spokane, onde cresci. Trabalhávamos todos em restaurantes. Por isso, chegávamos a casa à meia-noite, bebíamos umas cervejas e começámos a jogar este jogo parvo. Literalmente a desenhar imagens a partir do dicionário. Era um programa para fazermos, não era bem um jogo. Dois rapazes aqui, dois ali. Bebias um gole se ganhasses. Fácil. Mas jogávamos todas as noites. Mesmo todas as noites. E depois as pessoas começaram a aparecer. Estamos a falar de 1982, toda a gente jogava jogos de tabuleiro, ainda não havia videojogos. Mas eu sabia que havia qualquer coisa naquele jogo parvo. E disse: "vou fazer algo com isto". E os meus amigos, claro, disseram: "ah, está bem". E eu insisti: "não, a sério, vou mesmo fazer algo com isto".
Reconheceu o potencial?
Sim, porque vinha do empreendedorismo. Sou um empreendedor por natureza e gostava de estar envolvido nessas coisas. Mas foi totalmente inesperado, eu não tinha um grande plano. Hoje em dia, para montares um negócio, tens de mostrar projecções, teres um plano. Eu disse que ia fazer um jogo e ver no que dava. Foi um pouco o que fizeram [os também empreendedores de sucesso] Mark Cuban e Sara Blakey.

Mas, como disse, nem era um grande entusiasta de jogos de tabuleiro. Era bom a desenhar?
Bem, posso dizer-te que não queres o senhor Pictionary na tua equipa [risos]. Eu sou terrível. Acho que já se tornou num crachá meu, numa medalha de honra. Tenho evitado aprender a desenhar. Só sou bom a adivinhar. Em minha defesa, essa é a parte divertida do jogo.
A parte de adivinhar?
Não, não, quando não sabes desenhar. A frustração é que é divertida.
Costuma jogar, hoje em dia?
Não muito. Quando jogo, ainda gosto. Às vezes jogo com os meus filhos, e eles costumam ganhar-me. Quer dizer, vou corrigir: eles ganham-me sempre. Têm 29 e 31 anos, gosto de passar tempo com eles e de vez em quando jogamos o Pictionary. Continua a ser divertido. E as pessoas continuam a querer que eu jogue com elas…
É algo que está muito presente na sua vida.
Sim, e também mudou a vida de muitas pessoas, o que nunca esperei. Quando criei o jogo, era só uma festa. Íamos ganhar algum dinheiro, era só isso. Tinha um parceiro silencioso, um financiador. E dois parceiros com quem geria o negócio, cada um com as suas competências. Eu fazia as vendas, o marketing, criei o jogo em si… Fiz as listas das palavras que entraram no jogo. Um dos meus parceiros trabalhava comigo no restaurante, era artista gráfico. Outro era amigo de um amigo… Fiz muitos testes para o jogo, ficava horas a tirar notas. De poucos em poucos dias, estava com um novo grupo de amigos, a testar o jogo, a ajustar as regras… E um desses rapazes apareceu uma noite, jogámos na mesma equipa. Ele tinha uma gaguez terrível, por isso não conseguia adivinhar a tempo. Divertimo-nos muito. E ele só disse: "Estou dentro. Se me divirto tanto e sou tão mau, estou dentro". Foi perfeito.
E o Robert passou de empregado de mesa a tempo inteiro a gerir o Pictionary com os seus parceiros?
Sim, mas demorou algum tempo. Estivemos uns 18 meses a juntar tudo, enquanto tínhamos os nossos empregos. Lançámos oficialmente o jogo em Junho de 1985 e em Outubro acho que consegui largar o trabalho. Mas ainda não tinha muito dinheiro, estava a ganhar uns 500 dólares por mês, estávamos na luta. Mas tenho que dizer: essa foi a parte mais divertida de toda esta história. Naquela altura não tínhamos ideia do que fazíamos, só experimentávamos isto e aquilo. E divertimo-nos imenso.
E mesmo quando começou a tornar-se um sucesso, suponho que nunca esperasse que se tornasse um fenómeno global, que atravessasse gerações, que hoje estivéssemos em Cascais a falar disto tantos anos depois.
Não, de maneira nenhuma. No início, as minhas expectativas eram muito baixas. Não pensávamos que íamos mudar o mundo e ganhar muito dinheiro. Foi-se construindo gradualmente. Não fazia ideia, olhando para trás, que teríamos dezenas de milhões de jogos vendidos no mundo inteiro. E a melhor parte são as histórias que as pessoas me contam. Isso também não esperava.
Quer contar alguma?
Tenho muitas. Uma vez conheci uma mulher, uma artista na Califórnia, e ficámos amigos. Ela contou-me que, quando era adolescente, vivia na Letónia. Para poupar energia, todas as noites, entre as 19.00 e as 21.00, cortavam a luz no prédio. Então iam todos para a sala comum no fundo do corredor, à luz das velas, jogar um Pictionary que tinha vindo dos EUA no início dos anos 90. Foi assim que ela aprendeu a falar inglês e a desenhar nas paredes, porque não tinham papel. Estavam a desenhar Pictionary nas paredes! E foi isso que despertou a paixão dela pela arte. Agora é uma artista de sucesso na Califórnia.

Que óptima história.
Tenho histórias de todos os tipos. Há uns anos, estava a jantar num restaurante e a empregada de mesa descobriu que eu tinha criado o Pictionary. Começou imediatamente a chorar. Eu perguntei-lhe o que se passava. E ela contou-me que era órfã. Andava de casa de acolhimento em casa de acolhimento, tudo o que queria era uma família. Queria pertencer a algum lado. Um dia foi acolhida por mais uma família, de uma mãe, um pai e três filhos. Mas os miúdos não queriam nada com ela e ela andava triste. Certa noite, os pais tiraram o Pictionary do armário e começaram todos a jogar, os pais e ela contra os três irmãos. E parece que ela era muito boa no Pictionary, e a equipa com os pais ganhou. Como ela se estava a divertir, como estava feliz e se estava a abrir, em vez de ficar fechada no seu canto, de repente os irmãos começaram a vê-la como um ser humano na casa deles, não só como algo que estava ali. Voltaram a jogar e os miúdos quiseram ficar na equipa dela. E assim começaram a tornar-se realmente uma família. Por causa do Pictionary, esta mulher teve a família que procurava. É uma das minhas histórias favoritas, é incrível como um jogo pode mudar vidas.
Naqueles meses em que começou a trabalhar no jogo, naturalmente não havia certezas sobre se iria resultar, muito menos desta forma. Como é que os seus pais reagiram? Acreditaram logo na ideia?
Sabes, naquela altura não havia telemóveis, não havia uma comunicação constante como agora. Mas o meu pai estava do género "vai em frente, boa sorte", sem ser um pai galinha. A minha mãe também me apoiou. Estavam só contentes por eu estar a fazer alguma coisa. Nem me estavam a pressionar para que aquilo resultasse, nem travaram as minhas ideias e objectivos. Foi um bom ambiente. E depois ficaram surpreendidos, como todos nós. Não saber foi parte da diversão. Não sabíamos o que vinha a seguir, onde íamos vender, quem ia jogar. Havia aquelas chamadas de vendas. Será que vão aceitar ou não? E, a cada venda, a cada história, a nossa confiança crescia.
Nos primeiros meses, o Robert vendia directamente o jogo, certo?
Vendia do meu carro. Literalmente, não estou a inventar, porque não sabia como é que estas coisas funcionavam, não conhecia as regras. Supostamente, venderias a uma loja de brinquedos ou a grandes marcas como a Toys “R” Us. Mas não tínhamos acesso a essas empresas, na altura nem aceitavam jogos independentes. Por isso, pensei: "Olha uma concessionária de carros. Eles deviam ter um Pictionary no balcão para quem quer comprar um carro. Ah, olha um cabeleireiro. Deviam ter um Pictionary para as pessoas jogarem enquanto cortam o cabelo". Eu ia a todas as lojas.
E resultava?
Sim. Na altura ninguém vendia jogos, agora vendem jogos em todo lado. Vendi em farmácias, até numa imobiliária. Quem é que faz isso? Entrei numa loja da Century 21, acabado de vir do quarto onde vivia: "Olá, eu sou o Rob Angel, criei este jogo. E se tiver um jogo destes no balcão enquanto mostra uma casa? Talvez diga algo às pessoas". Compraram seis, foi uma das minhas primeiras vendas.
Está a descrever uma dinâmica muito local. Como é que cresceu e se tornou algo nacional e, depois, mundial?
Foi o boca a boca. As pessoas em Seattle jogavam e levavam para as férias em família. Depois mandavam para um parente. E, de repente, começámos a receber chamadas de todo o país. Enviávamos seis para aqui, seis para ali. Tivemos sorte na Costa Oeste, a cadeia de lojas Nordstrom adorou-nos e levaram os nossos jogos para toda a costa, chegámos à Califórnia e foi enorme. Pegou logo. Passámos de eu andar a vender nas lojas para, um ano depois, estarmos a vender a nível nacional. Dois anos depois, tornou-se mundial. Foi mesmo louco e inédito.
O Robert viria a criar outro jogo mais tarde, o ThinkBlot. Ainda é algo em que pensa, em ideias para desenvolver novos jogos?
Estou mesmo reformado. O ThinkBlot foi muito divertido, uma vez mais o processo criativo foi óptimo. Mas, quando vendi a empresa, percebi que adoro jogos, mas não gostava do negócio dos jogos. Quando as pessoas vendem as suas empresas, toda a gente diz: "Tens de fazer outra vez, tens de provar que não foi só um sucesso, tens de fazer outro jogo…" Não me parece. Disse que ia tirar algum tempo para perceber o que queria fazer. O que incluiu, como se viu, ficar em casa. Não ficar em casa, mas aproveitar o tempo com a família, criar os meus filhos. Fiz alguma mentoria, muitas viagens, muito trabalho em organizações sem fins lucrativos. E foi isso que me deu alegria, não um outro negócio. Quando aconteceu, toda a gente dizia: "Ah, não podes estar feliz assim, a tua vida não pode ser só isto”. E agora que estamos todos um pouco mais velhos, toda a gente já diz: "Gostava de ter feito o mesmo, tinhas razão".

E enquanto consumidor, está atento ao mercado dos jogos de tabuleiro? Gosta de experimentar?
Sou uma pessoa normal. Podia estar muito focado nessa indústria, mas não estou assim tanto. Mas o meu cérebro nunca desliga, criativamente. Na minha cabeça transformo quase tudo em jogos, é algo que não consigo parar de fazer.
Lembra-se de alguma palavra que introduziu no Pictionary e que se revelou mesmo difícil de adivinhar?
Na primeira lista de palavras, eu achava que a mais difícil era “área”. Ninguém vai perceber, ninguém vai conseguir adivinhar. Mas as pessoas perceberam. Eu achava que era uma palavra quase impossível, mas as pessoas chegam lá. Por isso não sei se há assim tantas palavras que sejam mesmo, mesmo difíceis. O importante, a única regra, é ser uma palavra que toda a gente conhece.
Como desenharia a palavra "Cascais" se lhe saísse no Pictionary?
Por isso é que sou mau no jogo. O que faria era desenhar as ruas, os cafés, a baía... Não, ninguém ia perceber, podia ser qualquer vila ou cidade. Agora que sei jogar melhor, faria um mapa de Portugal e punha um pontinho. Chama-se contexto, algo que não faço muito bem. Sou muito literal para um tipo criativo.