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Maria João Lopo de Carvalho: “As pessoas que passam pelo Estoril não têm noção do que foi preciso para ele existir”

“O Estoril Não Caiu do Céu” é uma biografia romanceada de Fausto de Figueiredo. Entrevistámos a autora sobre esta história impressionante.

Ricardo Farinha
Escrito por
Ricardo Farinha
Maria João Lopo de Carvalho
DR | Maria João Lopo de Carvalho
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A origem do turismo português e um projecto de desenvolvimento como poucos, com espiões e refugiados de guerra à mistura. É esta a história do Estoril, uma zona pensada ao milímetro com o plano de a tornar numa das mais relevantes e chiques da Europa – o que se revelou um sucesso. Maria João Lopo de Carvalho recupera-a em “O Estoril Não Caiu do Céu”, uma biografia romanceada do fundador da Costa do Sol como a conhecemos, o empresário Fausto de Figueiredo. 

Editado pela Oficina do Livro, foi oficialmente lançado a 17 de Setembro e já conquistou o Prémio História de Cascais Ferreira de Andrade. A Time Out mergulhou nas memórias do Estoril e do seu criador nesta entrevista à autora que também tem raízes locais.

Porque é que, nesta fase da sua carreira, quis contar a história do Fausto de Figueiredo e trabalhá-la a partir de uma biografia romanceada? 
As boas memórias vêm das casas onde vivemos e onde fomos felizes, não é? Com um determinado cheiro, determinados objectos, onde se vêem determinadas vistas, onde aconteceram certas peripécias. E um dos lugares onde fui mais feliz foi em São João do Estoril, na casa dos meus avós paternos, onde passava todos os Verões, sobretudo na adolescência. Foi onde pude fazer todas as transgressões que possam imaginar – dentro de certos limites, claro –, onde andava de mota, saía à noite para os bares… Aquela casa debruçada sobre as rochas, aquele mar a bater, o barulho das ondas na varanda... Era de facto uma situação privilegiada, mas dei por mim a pensar: quem é que fez isto tudo? O casino, o Tamariz, quem é que fez isto tudo? E depois vi que tinha sido o Fausto de Figueiredo, que para uma miúda era um nome que não dizia nada.

Claro, já tinha acontecido há várias gerações atrás.
Mas, entretanto, quando comecei a escrever sobre o meu bisavô Manoel Caroça, que foi quem despoletou na minha avó o gosto pelo Estoril, e comecei a ligar os dois… Faziam anos no mesmo dia, 17 de Setembro, dia em que foi o lançamento deste livro, e os dois eram da Beira Alta. De certeza que se cruzaram, e comecei a tentar perceber estas raízes todas. Quando comecei a aprofundar a história do Fausto de Figueiredo, percebi que ele tinha casado com a menina Clotilde, que dá o nome a uma das avenidas do Estoril e outra tem o nome da irmã, Aida. Pouca gente sabe isto. A Clotilde sofria dos pulmões e tinha estado durante muito tempo na Guarda, no sanatório do meu outro bisavô, o Lopo de Carvalho. Um daqueles chalets para as famílias mais abastadas. E tudo isto era um puzzle. Sendo 17 o meu número da sorte, morando eu no número 17, parecia que estava escrito que tinha de escrever sobre o Fausto de Figueiredo. E, pronto, também já tinha feito uma história para a família Mello sobre os descendentes do Alfredo da Silva, uma encomenda, e tudo se tinha cruzado no Estoril. E foi assim que comecei a estudar.

Suponho que tenha sido um processo moroso.
Sim, muitas vezes as pessoas não têm essa noção, mas um livro destes – ao qual foram cortadas 200 páginas à última hora – demora, no mínimo, três a quatro anos a fazer, se for um trabalho sério. O que tentei foi dar muitas raízes. Não gosto de faltar à verdade aos meus leitores. Tento o máximo do rigor que me é possível, ir a todas as fontes. Claro que há pequenos erros, não é? Há sempre pormenores que escapam. E a partir desse rigor, desse denominador comum, criar asas, contar uma história envolvente. E o que é uma história envolvente? É humanizar a figura de Fausto de Figueiredo. 

Fausto de Figueiredo
DRA estátua de Fausto de Figueiredo nos jardins do Casino Estoril

Com elementos que não são palpáveis e dados que não existem?
Há três dimensões. Existe a dimensão pública – e com o Fausto de Figueiredo era mesmo muito pública, tinha sido vice-presidente do que agora chamamos de Câmara Municipal de Cascais, e que na altura era a Comissão Administrativa, foi deputado da nação, tinha vastos artigos publicados nos jornais… Isso aí foi tudo varrido. Depois há a dimensão privada, que só se consegue através de cartas pessoais, que há pouquíssimas, dos testemunhos da família, das pessoas que ainda contam a história da história que ouviram, porque a personagem, Fausto de Figueiredo, morreu em 1950, já não há ninguém que o tenha conhecido, não é? Ou, pelo menos, conhecido bem. Depois dessa humanização que é criada com os testemunhos privados, temos a faceta secreta. E essa é a mais difícil ou até impossível de lá chegar, não é? Portanto, aí sim, existe uma dose de interpretação, se quiser, tanto da parte pública como da privada, para tentar chegar ao fundo do coração e do pensamento dele, que foi o mais difícil para mim. Portanto, isto é uma versão.

O livro tem o subtítulo “Uma história devida”, tudo junto. Era uma história que merecia e precisava de ser contada?
Acho que é uma história mais do que devida. As pessoas que passam pelo Estoril não têm a mínima noção do que foi preciso para ele existir e para ser o que é hoje. Tanto pela Primeira República como pelo Estado Novo, o Estoril e a obra de Fausto de Figueiredo foram utilizados como cartão de visita de Portugal. Na Segunda Guerra Mundial, os milhares e milhares de refugiados que passaram por aqui, de judeus, de pessoas em trânsito para a América, de reis sem coroa nem corte... Nem eu tinha a noção de que o Saint-Exupéry, que para nós todos é a referência do Principezinho, tinha estado uma série de dias no Hotel Palácio a escrever, não o Principezinho, mas outros textos igualmente importantes. E os duques de Windsor, o Ian Fleming que criou o James Bond. Há algumas coisas que são mais conhecidas do que outras, mas eu não tinha a noção da dimensão que foi, e desta visão de conjunto estrutural para o Estoril, que englobava as termas, o casino, o Tamariz, a praia, o comboio eléctrico e, depois, o Sud Express, que ia de Paris ao Estoril. A quantidade de casas, os chalets, os melhores arquitectos, os hotéis de luxo, os campos de golfe… Que, na altura, não era sequer um desporto imaginável para os portugueses, não é? O ténis, as regatas, as corridas de cavalos, também as muitas acções de solidariedade e de beneficência. Há aqui um legado muito grande. As praias, os desfiles de fatos de banho, as mulheres estrangeiras de perna traçada, sapatos de salto alto e a fumarem em pleno Estado Novo. Era impensável. E foi tudo ideia dele, quando foi Biarritz e pensou: 'o Estoril tem temperaturas mais altas, a água do mar é mais quente e tem muito mais dias de sol. Portanto, isto tem tudo para ganhar.' Como é que uma pessoa imagina isto e tem esta visão estratégica toda e depois trabalha nos bastidores… 

Para fazer acontecer?
Sim, e conseguir que os poderes públicos o permitam, não é? E acreditem no projecto. O Fausto de Figueiredo tinha a noção de que, se não houvesse casino e não houvesse jogo, não conseguiria manter o Estoril vivo. É uma grande receita, por isso, o jogo tinha que funcionar ali. Ele mexeu-se bastante para o conseguir. Nós todos, quando vemos o Estoril e gostamos tanto dele, não imaginamos o que está por trás. Não imaginamos o génio por trás, embora possamos dizer que era uma pessoa com um feitio difícil. Se ele aqui estivesse já me tinha dado um raspanete: como é que eu ouso entrar na vida dele? Mas tinha esta outra faceta que descobri, muito humana e terna, sobretudo com as três filhas. Eram quem lhe derretia o coração, mais do que os dois rapazes, mais velhos, que ele também teve. Ele era, como hoje dizemos em linguagem comum, um control freak. Controlava tudo, ao mais pequeno pormenor. A ponto de os funcionários do Hotel Palácio estarem à espera de um sinal do chauffeur do Fausto de Figueiredo, tipo três buzinadelas, para se pôrem em sentinela porque o patrão estava a chegar. Um dia entrou no próprio comboio e não teve tempo de comprar o bilhete, sendo que ele fazia questão de comprar sempre. E o pica bilhetes não o reconheceu e ele só disse: 'Não tenho, não tive tempo de comprar'. Não se desmascarou. Quando chegaram à estação do Cais do Sodré, o pica arrastou-o por um braço até à polícia de serviço para dizer que aquele senhor estava sem bilhete. E quando percebeu que era o patrão Fausto, o homem ficou branco. Mas o Fausto de Figueiredo disse: 'Não, senhor, não só vou pagar o meu bilhete, como vou pagar a multa, como vou premiá-lo por ter cumprido o seu dever.' Era este tipo de pessoa. Não admitia um atraso, mas depois era este coração. 

Maria João Lopo de Carvalho
DR

O que é que mais a surpreendeu, da investigação que fez?
Achei graça, nesta questão de ele ser um control freak, à forma como ele se livrava das coisas que não controlava. Por exemplo, o primeiro arquitecto do Parque do Estoril foi o Henri Martinet, um francês que era uma primadonna, já com um currículo invejável. Eram duas personalidades muito fortes frente a frente. É claro que, pouquíssimo tempo depois, o Fausto de Figueiredo despediu o arquitecto e contratou outro. Quando sentia que não controlava, que não conseguia mandar neles, rapidamente se via livre deles. Outro exemplo: o jogo era uma variável que ele não conseguia controlar, não se controla a sorte e o azar. Então, ele preferiu arranjar uma sociedade arrendatária, que ele controlava, para não controlar o jogo directamente. E imagine-se os espiões, para aquela cabeça, o que seriam os espiões no Hotel Palácio, que era o ninho principal dos Aliados. Depois, ao lado, o outro hotel, o Hotel do Parque, era o ninho do Eixo. Muitos anos depois da Segunda Guerra, quando o Hotel do Parque fez uma remodelação e tirou os revestimentos de madeira das paredes dos quartos, encontraram cavilhas de comunicações secretas dentro dos armários. Imaginem o que isto seria para alguém como o Fausto de Figueiredo. O que mais me espantou, além de todas as obsessões dele, foram estes pontos fracos. Os pontos fortes muitas vezes são os mais visíveis, mas estas fragilidades que o tornam tão humano é que para mim foram mais comoventes. Destas variáveis todas que lhe fugiam ao controlo, a obsessão no fim da vida era que ia morrer falido. “Vou falir, vou falir, vou falir.” Por mais que lhe dissessem que não. Tinha os caminhos de ferro, a concessão, até 1970. Tinha o casino que estava a correr muito bem. Tinha as cortes todas, os reis a virem para cá. Mas, por mais que lhe dissessem isto, a pessoa fica ainda mais obsessiva nos momentos finais da vida, não é? Mas, pronto, não era só o homem forte de peito de ferro que está no Parque do Estoril em estátua. Era um ser humano, com todas as fragilidades, defeitos e qualidades. E isso foi o mais surpreendente, porque todos falavam do mau-feitio, do irascível, do controlador. 

O Fausto de Figueiredo ainda tem filhas vivas?
Não, tem netas e bisnetos. Entrevistei todos os que pude. E falei durante muitas horas com muita gente ligada ao Estoril, às empresas. Tive que ver por várias vertentes. Quando foi a Noite Sangrenta, no princípio dos anos 20, em que vários foram perseguidos e houve um morto, foi uma história alucinante e queriam matar o Fausto de Figueiredo e o Alfredo da Silva. Queriam acabar com os capitalistas. Ele teve que fugir pela janela de casa, e daí foi para o Norte de França, enquanto tentava controlar as coisas cá. É uma história de aventuras. E depois achamos que aquilo acalmou. Mas não, vem a Guerra Civil de Espanha, depois a Segunda Guerra. E tudo passa sempre pelo Estoril. Parecia que era a capital de Portugal. Há aquele provérbio muito giro que se dizia na altura que era: Cascais nobreza, Monte Estoril grandeza e Estoril grandela. Queria dizer o dinheiro dos novos ricos, o dinheiro fresco.

Quais foram as fontes mais desafiantes e difíceis, de tudo aquilo que recolheu?
Houve as tais três dimensões: a pública, a privada e a secreta. Da pública, é tudo público. Corri os jornais todos, e claro que tive a ajuda de um investigador que se mexe muito bem nesses meandros, o Francisco Fialho da Universidade Autónoma, que me ajudou muitíssimo, porque eu demoraria muito mais tempo. Depois era preciso cruzar tudo. Por exemplo, o caso da Noite Sangrenta que referi, uma coisa é o que a família conta, outra é o que aconteceu realmente. E aquilo que está mais próximo do que aconteceu realmente está nos jornais da época. A Torre do Tombo, os arquivos da Presidência da República têm muita coisa. Tudo o que está publicado das intervenções dele na Assembleia da República, todas as cartas e documentos impecavelmente conservados no Arquivo Histórico Municipal de Cascais… É infinito, não é? 

Parece!
O problema é cortar. Escolher o fundamental para a história. E aí temos que fazer uma história que prenda. Porque isto não é um livro de história, é um livro de histórias. Partindo do máximo do rigor, não pode ser exaustiva. Não estou a fazer uma biografia, estou a dar asas a uma história. Por isso é que, no fim do livro, tenho umas dezenas de páginas de notas de rodapé. Porque a minha editora me disse logo que esta informação é totalmente chata para o leitor comum. Mas eu também não consigo não as colocar. Porque há sempre a pessoa que quer saber mais. E graças a Deus estamos no século XXI, temos muita coisa online e fácil de consultar. O mais complicado é que, no princípio do século XX, quando a pessoa ficava mais velha, mandava queimar as cartas pessoais. E foi o que aconteceu com o Fausto de Figueiredo. Há duas ou três cartas que estão com a família, mas o resto… E era comum, o meu bisavô também queimou as cartas todas, fazia parte. Não queriam que aparecessem pessoas como eu a remexer no que era secreto. Mas, pronto, o Estoril é o meu lugar de eleição e será sempre. E gostava que este livro não ficasse só para as pessoas da Costa do Sol, que fosse para Portugal inteiro. Se o Rui Veloso é o pai do rock, o Fausto de Figueiredo é o pai do turismo. A minha filha é licenciada em hotelaria e o primeiro curso de hotelaria em Portugal foi nas caves do Hotel Palácio, quando o Fausto de Figueiredo percebeu que não havia treino para um hotel de luxo. Ninguém sabia. Os empregados não sabiam falar línguas, não sabiam o que era o luxo ou o que os clientes exigiam. Mandou vir professores de França e Inglaterra e criou a própria escola, também aí foi inovador. E depois criou o Estoril Praia, para os funcionários da empresa praticarem desporto, e doou-lhes terrenos para construírem as suas casas.

Maria João Lopo de Carvalho
DR

Diria que este livro, além do Fausto de Figueiredo, é uma biografia do Estoril?
Sim, certamente, até pela riqueza das fontes que existem. Temos esta fantástica exposição de fotografia na Casa Sommer, A Invenção do Estoril, que conta isto em imagens. E depois tem graça ter sido o Fernando Pessoa a inventar o nome, não é? Que é algo que ninguém, nem eu…

Inventou que nome? 
Costa do Sol, Terra Prometida. Foi em 1928, nas Páginas de Pensamento Político, com notas para uma campanha de propaganda da Costa do Sol. Foi ele que deu este nome... Depois teve que se trocar porque, entretanto, no sul de Espanha, já depois de o Fausto de Figueiredo morrer, havia uma outra área chamada Costa do Sol e teve de se trocar para Costa do Estoril. E antes ainda falavam em Riviera Portuguesa e Enseada Azul.

Estava a mencionar a exposição de fotografias na Casa Sommer, e também quis incluir algumas imagens no livro.
Sim, um caderno no meio, com muita ajuda do Arquivo Histórico. Acho que as pessoas também têm que visualizar. É só um caderno, com pouquíssimas imagens, mas dá para ter uma ideia e também inclui coisas do arquivo familiar. Assim podem ver este homem que nasce na Beira Alta, com 12 irmãos, filho de um professor de primeiro ciclo, que vem para Lisboa porque a irmã assim o determinou – os pais estavam velhotes e essa irmã é que mandava – e vai dormir no saguão da farmácia, onde tem o seu primeiro emprego, e acaba por criar esta fórmula. Só poderia ser um génio, não é?

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