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Éme
© Francisco CorreiaÉme

Éme: “Sinto que a minha biografia deixou de ter interesse”

No ‘Disco Tinto’, editado na passada sexta-feira, 15, Éme reinventa-se como contador de histórias alheias. E continua a ser um cantor folk como existem poucos em Portugal.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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João Marcelo, o cantor e compositor que conhecemos como Éme há mais de uma década, ainda era adolescente quando nos sentámos com o gravador ligado pela primeira vez, em Dezembro de 2011. Falámos da sua banda, Os Passos em Volta; da sua editora, a Cafetra; da sua carreira a solo; da vida e das dores de crescimento numa cidade e num país então sequestrados pela troika, que ele e os amigos traduziam em canções – e ainda hoje traduzem – com a maior naturalidade. O mundo deu muitas voltas desde essa altura, porém ele nunca parou de verter aquilo que sente em canções. E acaba de reunir mais dez no seu novo Disco Tinto.

Assim que nos sentamos, no miradouro do Monte Agudo, diz que está preocupado porque desta vez não teve ninguém a criticá-lo, e sente que precisa desse choque com a realidade. Está a exagerar, se bem que a sua preocupação é genuína. “Se a Mariana [Pita, ou Moxila, a sua companheira] não gosta ou acha que alguma coisa não está tão boa como as outras, não se coíbe de dizê-lo. Dá-me um feedback super-honesto, de uma forma muito crítica. Mas, normalmente, havia uma ideia de que a unanimidade da banda, das pessoas com quem estava a gravar, era um critério para a música estar pronta. Neste caso, não tive tanto isso. Dependi mais a minha intuição.”

O Disco Tinto, editado há nem uma semana, foi o primeiro que produziu e gravou sem a ajuda de amigos e conselheiros como o Cão da Morte (hoje Luís Severo), Filipe Sambado, B Fachada ou Manel Lourenço (Primeira Dama), que o acompanharam ao longo dos anos. “Por um lado, foi uma questão de necessidade. Não tinha dinheiro e não podia continuar a cravar a toda a gente que me ajudasse. Tenho 32 anos, já não sou um miúdo. Precisava mesmo de fazer isto e não podia estar à espera de fundos da GDA e mais não sei quê”, partilha. “Por outro lado, não me cabe na cabeça que um artista não se saiba gravar, nem arranjar a própria música. Que não seja auto-suficiente.”

“Também porque, em Portugal, há pouca indústria [musical]. Então ando sempre à procura de maneiras artesanais de fazer produtos com qualidade. Acho mesmo que é a única forma de concretizar aquilo que quero. E os artistas de quem eu gosto sempre tiveram um momento qualquer de auto-suficiência. Por isso, era um exercício inevitável a determinado ponto”, continua. “Foi neste ponto porque tivemos o confinamento e, nesse tempo, deu para fazer, por exemplo, a ‘Estocolmo [1984]’ e gravar outras músicas com a Mariana, em casa. Aprendi um bocado.” 

“Estocolmo 1984” partilha algumas características com as faixas de Disco Tinto. Sente-se nela, como nesta fornada de canções, uma preocupação em contar uma história; há uma personagem central em torno da qual a folk de Éme gravita. “A ‘Estocolmo’ é da mesma fornada”, assume. “Não a quis incluir [no álbum] porque achei que não era uma personagem do mesmo sítio que as outras, mas foi o mesmo tipo de exercício.” De escrita. “Sinto que a minha biografia deixou de ter interesse”, desenvolve. “Quis arranjar formas de escrever que tirassem a componente biográfica e que lançassem outra ideia qualquer. É um bocado difícil fazer isso no estilo de que eu gosto, que é mais tosco. Mas a mim, como ouvinte, irritar-me-ia [escutar] a minha biografia continuada em discos.”

“Não consigo deixar de projectar a minha personalidade noutras [personagens]. Mas o que sinto, e o que quero dizer sobre o mundo, não está na minha biografia neste momento”, reconhece. “Aquela ideia americana de winners e de losers é uma das cenas que mais me irritam. Há pessoas cujas expectativas simplesmente não se enquadram nesse binário. Está dentro da minha biografia, mas se calhar está mais óbvio noutras. Por exemplo, na do Zé Lopes”, actor português que morreu sem abrigo, em 2019, e com quem Éme chegou a estar, como detalha em O Actor, tema-central do disco, onde as perspectivas de ambos se confundem. Ou na ‘Estocolmo’ ou nas ‘Dores Laborais’…”

“O disco é uma celebração de pessoas que não têm as expectativas com que nós crescemos. Que não se enquadram nesse binário. Porque, se fosse por aí, eu era um loser. Enquanto o winner é quem está na Cidade FM e em outdoors espalhados pela cidade. Mas não me considero isso, nem o contrário”, aponta. “Ou o Mamede, por exemplo, que é análogo ao disco, mas que não está lá”, adiciona. “O Mamede”, de seu nome Fernando, é o fundista português sobre quem Éme canta em “Estocolmo 84”, editada apenas como single, com “Sem Nome” no lado B. “Li há uns anos uma biografia alongada dele, escrita pelo António Araújo, e ele preferia ter uma loja na Avenida de Roma do que ser uma grande estrela, como o Carlos Lopes. E o que o pessoal via era que ele falhou. Mas na verdade ele conquistou aquilo que ele queria.”

Cantar direito por linhas tortas

Da mesma maneira que “Estocolmo 84” é um elogio do (aparente) fracasso do atleta Fernando Mamede, o Disco Tinto celebra outros personagens cujas histórias se escrevem por linhas tortas: o taberneiro proletário de “Dores Laborais”; os fregueses desse idílio noctívago que é a “Disco Tinto”; o aspirante a sommelier de cerveja para quem “Super [Bock] é igual a Sagres” na belíssima “Onde é que foi toda a gente?”; o bêbedo de “Branco Maduro”; “O Actor” Zé Lopes; o “Fã nº 2”; “O Filho Mais Velho do Embaixador”, esse “estupor” e o narrador que teve o azar de se cruzar com ele; o músico que toca para ninguém e se desforra no bar aberto de “Ratitos”; e um rol de secundários.

As canções onde eles residem alicerçam-se sobre a folk – anglo-americana, sobretudo, mas também a portuguesa. Têm diferentes tons e texturas. São “toscas” mas com melodias certeiras, escritas e cantadas com um misto de mágoa e humor – há pelo menos uma punchline óptima em cada uma. E quase tudo é tocado por Éme. Com uma pequena ajuda dos seus amigos. Apesar de ter feito questão de gravar e produzir o disco sozinho, Moxila ampara-o em todas as faixas menos na nona, enquanto os dedos de Lourenço Crespo viajam pelas teclas do piano num par de canções, Miguel Abras toca baixo numa e Francisca Aires Mateus pega no violino noutra ainda.

Os quatro vão acompanhá-lo ao vivo nos concertos de apresentação do novo álbum, a 13 de Abril, um sábado, na Lisa, e na sexta-feira, 19, no Passos Manuel (Porto). Tirando a violinista, todos tocaram na Banda Éme “até 2018 ou 2019. Vai ser parecido, só que mais maduro, menos banda indie. Vá, [banda] de olds indie. Tipo The Magnetic Fields, mas menos nonchalante. Com o volume que só uma banda sem bateria permite: baixo. Que estes ouvidos já não estão para grandes volumes”, brinca. Agora a sério: “Estou mesmo excitado por voltar a tocar com banda, com eles. Gostava que o concerto da Lisa estivesse packed.”

Depois destas primeiras datas, o cantor ainda não sabe se vão continuar a tocar juntos ou se vai aventurar-se sozinho pelo país. “Acho super-fixe a ideia de tocar imenso, de andar a partir pedra e a conquistar espaço. É algo que associo a um músico de working class. Ainda não sei se vai ser possível ou não, mas gostava de andar a tocar em sítios pequenos e isso correr bem, de conhecer as pessoas”, partilha. “Até porque sinto finalmente que tenho 40 minutos [de concerto] mesmo sólidos.” E dantes não? “Quando acabo um álbum sinto sempre que tenho os 40 minutos desse álbum. Neste momento, curto bué o Disco Tinto, porém, se fizer um repertório de todos os álbuns, não sei quantas destas canções é que irei tocar.”

“Sinto falta de um circuito de bares”, prossegue. “Quando tenho cenas novas, gosto de tocar imenso, para testar as tais punchlines. Mesmo que estivessem só lá só sete ou oito pessoas, para ver se elas estão a rir ou se aquela dica tem impacto. Se um sítio tem silêncio, se outro não tem. Quando tenho isso sinto-me mais seguro”, confessa. “Gostava de ter um open mic, por exemplo. Uma coisa com algum critério, para quando tivesse uma ideia qualquer ou uma música nova ir logo lá experimentar. Inscrever-me e tocar e ver as reacções. Mas tinha que ser com pessoal que não estivesse a cantar covers. Um bocado como o Jeffrey Lewis e The Moldy Peaches tinham o SideWalk Cafe [em Nova Iorque]. E estavam sempre lá todos a experimentar músicas de merda, que fizeram no dia anterior.” Não parece má ideia, antes pelo contrário. “Entrepreneurs de Lisboa, do que é que estão à espera?”

Lisa. 13 Abr (Sáb). 22.00. 8€

Continuamos à conversa

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