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Hélio Morais
© Ana ViottiHélio Morais

Hélio Morais: “Sem falar das coisas não se consegue mudar o que quer que seja”

Ao segundo álbum a solo, ‘Pisaduras’, Hélio Morais assumiu o próprio nome. Antes do concerto de apresentação, a 9 de Março, no Centro Cultural de Belém, explicou porquê.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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A pandemia de covid-19 tinha-nos presos em casa quando Hélio Morais pediu uma guitarra emprestada e começou a fazer músicas, sentado no sofá, “a tentar chegar ao fim dos dias”. Foi num desses dias – que pareciam não ter, nem chegar ao fim – que o baterista de PAUS e Linda Martini deu por ele a tentar “trazer alguma pacificação para a [sua] mãe”. Ela tinha saído de casa quando ele era muito novo, “por uma questão de sobrevivência”, conta. “Mas ainda acarretava um sentimento de culpa – coisa que nunca lhe atribuí”. O resultado foi “Olhos Salgados”, escrita na perspectiva da mãe e a peça fulcral de Pisaduras, o seu segundo disco, mas o primeiro em nome próprio, que ao longo de pouco mais de meia-hora balança entre África e o Brasil, o Atlântico e o Mediterrâneo, sempre alicerçado na folk.

“Quando fiz o Murais, nunca tinha pensado em lançar algo a solo. Estava só a fazer umas coisinhas ao piano. De repente, dei por mim com suficientes canções para fazer um disco”, recorda. Na altura, sentiu que “tinha de mandar aquilo cá para fora. Mas não estava seguro do que tinha”. E houve “algum receio de assumir logo isso como Hélio Morais”. “Porque é um compromisso grande, é o meu nome", diz. Por outro lado, não estava a cantar sobre a sua vida, sobre coisas pelas quais só ele tivesse passado, pelo que foi fácil assumir outro nome, ao mesmo tempo próximo mas distante do seu – Murais, em vez de Morais. Agora o contexto é outro. “Isto é parte da história da minha família mais nuclear, eu e os meus pais. Não podia contar isto em nome de outra pessoa ou de um pseudónimo. Tinha que assumir.”

“Até porque participam outras pessoas no disco”, continua. “Era um bocado injusto eu não assinar com o meu nome, e elas terem os nomes delas” nos créditos do álbum e na lista de convidados e participantes em cada faixa. Este é um dos aspectos mais curiosos do disco. Apesar de estar assinado em nome próprio, Pisaduras é um trabalho de grupo – muito mais do que Murais. Não é por acaso. “Cresci num bairro com muitos problemas. Mas onde, apesar de tudo, as pessoas estavam atentas e cuidavam umas das outras. Esse sentido de comunidade trazia-me algum conforto. Hoje, reconheço que ter essas pessoas perto de mim foi um privilégio. E é isso que eu celebro depois no disco.” Não só nas letras, como através dos convidados que se multiplicam de canção para canção. Hélio nunca está sozinho.

Numa das faixas-chaves do novo álbum, “Almoço de Domingo”, memória de repastos passados na companhia da família materna, Hélio recorda que “queria, também, fazer parte dessa arte de não chorar só”. Esses versos, como todos os que canta em nome próprio, são ancorados na sua biografia. E soam determinantes. Passou a vida a esforçar-se para “não chorar só”, e conseguiu-o. Primeiro, no seio da família e do bairro; depois na cena punk e hardcore de Lisboa e dos seus subúrbios; e hoje rodeado pelas pessoas que trouxe para junto de si ao longo das últimas duas décadas – os membros de Linda Martini e dos PAUS, as suas bandas desde os anos zero; Fado Bicha, Isaura, Catarina Munhá e Gui Aly, os artistas que agencia n’A Lavoura; e outros amigos e conspiradores – mas também aquelas que estão com ele desde a primeira hora, como a mãe, que descreve como “uma amiga”.

Assim que completou “Olhos Salgados”, mostrou-a à sua mãe. Foi o ponto de partida para um disco que faz do pessoal político. Abre com “Nem Luas, Nem Marés”, politizada e melancólica, pessoal ainda que metafórica. “A ‘Pra Que Chegue ao Fim’ vem no seguimento, a recordar as coisas e as discussões que vi em casa. Depois surge a ‘Voltas e Voltas e Voltas’, que fala sobre estares numa situação na qual não devias estar – na qual ninguém devia estar – mas da qual não sabes como sair e, sempre que tentas fazê-lo, acabas por voltar atrás. Acho que todos já tivemos uma situação deste tipo”, reconhece. “Depois fiz o ‘Sonhei Coisa Proibida’ que é mesmo sobre mim. Tu fantasias que era tão mais fácil se esta pessoa não existisse na tua vida. É óbvio que nunca dizia isso, não é? Mas, nalguns momentos, a vida era mais fácil se, ou aquela pessoa não existisse, ou tu próprio não existisses.”

Quando lhe perguntam se está confortável com a publicação destas palavras, diz que sim. “Fala-se muito pouco sobre estas questões em Portugal”, argumenta. Está a falar “sobre violência de género”, especifica. “E a solução que muita gente encontra, quando não tem ferramentas emocionais para lidar nem a possibilidade de falar sobre o assunto, é a fuga para a frente. Acho que durante muitos anos fiz isso”, assume. “Mas sem falar das coisas não se consegue mudar o que quer que seja. Só quando falas destas [questões] é que consegues ganhar algum sentido de comunidade e de camaradagem. E começar a sarar.

“Não estava a cantar sobre dor, mas sobre pisaduras”

As canções de Pisaduras nasceram num país confinado. Porém, passaram os últimos anos a crescer e a ganhar os contornos que hoje revelam. “Já tinha as bases, mas faltava-me compor algumas letras, terminar algumas estruturas e fazer uma canção ou outra ainda. Então fui ao estúdio dos Linda [Martini], peguei na bateria, nos teclados, na viola, em tudo e mais alguma coisa, e levei para o Alentejo. Fiquei ao lado de uma terra que se chama Deixa o Resto, que acabou por ser o nome da última música e esteve para ser mesmo o nome do disco”, confidencia. “O acrónimo de Deixa O Resto é DOR... Só mais tarde percebi que não estava a cantar sobre dor, mas sobre pisaduras. Que nos marcam e depois desaparecem.” 

Foi o seu agente quem o ajudou a chegar a esta conclusão. “Foi o primeiro a dizer-me que não via este disco como um disco de dor”, constata. “Tem dor, claro. Mas é mais um disco de sarar. E de celebrar. Por ter saído daquele sítio com as pessoas com quem saí. E precisamente porque elas estiveram lá. É por isso que o disco está cheio de pessoas”, reflecte. “Este passado foi duro, no entanto sobrevivi-lhe, porque tive estas pessoas todas ao meu lado. E hoje, com outras pessoas ao meu lado e com algumas que se mantêm, celebro por estar num sítio bué fixe. Mesmo com todas as tristezas que venham pontualmente, sou uma pessoa que se considera bastante feliz”, nota.

Foi depois da estadia no Alentejo, em Setembro de 2021, que algumas dessas pessoas entraram pelo disco adentro. Em Dezembro, Hélio foi para o Recife, onde gravou com Toca Ogan, da Nação Zumbi. Depois, encontrou-se em Gravatá com Benke Ferraz, dos Boogarins, que já o tinha acompanhado no primeiro disco e voltou a produzi-lo. Djalma Rodrigues foi ter com eles ao interior de Pernambuco. Seguiu para o estúdio de Guilherme Kastrup, que havia trabalho com Elza Soares, em São Paulo. ÀIYÉ e Lumanzin juntaram-se mais tarde, através da internet. Por fim, de volta a Portugal, entraram em cena Miguel Ferrador, Rita Onofre, Edgar Valente e “outras pessoas mais próximas, que não tinham estado no disco anterior”, como Filho da Mãe e Cláudia Guerreiro, dos Linda Martini.

A generalidade destas pessoas não vai poder acompanhá-lo ao vivo, a 9 de Março, no CCB (Lisboa). Não obstante, não estará sozinho. A Miguel Ferrador, nas teclas, e João Vairinhos, no MPC, que já o acompanham desde os tempos de Murais, juntam-se agora as percussionistas Emile Pereira e Méli, do colectivo Gira, e uma pessoa que o surpreendeu. “Precisava de alguém para tocar pandeiro e fiz um post, no Instagram, a perguntar se alguém se lembrava de pessoas que não fossem homens cis e hétero. Fui recebendo algumas sugestões, até que Larie, que anteriormente era conhecide como Labaq e toca com Fado Bicha, me mandou uma mensagem: ‘Amigo, eu toco pandeiro’. Na minha cabeça, era muito mais conhecide do que eu, não podia querer tocar comigo. Só que queria. E fiquei muito contente. Ainda por cima toca violão, além de pandeiro”. 

Ainda não sabe se esta formação o vai poder acompanhar em todos os concertos, mas gostava que isso acontecesse. “Ter um palco tão pouco diverso era uma coisa que me incomodava há já muito tempo. Ainda mais num disco destes. Não faz mesmo sentido nenhum. E mais uma vez, isto vem de que lugar? De ter tido a sorte de estar rodeado de muita gente que me faz pensar, pessoas muito politizadas. Sei que tive um início de vida complicado, está aqui, está no disco. Mas hoje considero-me um sortudo do caraças.”

CCB (Lisboa). 9 Mar (Sáb). 21.00. 10€-15€

Hélio Morais, Pisaduras
DRHélio Morais, ‘Pisaduras’

Continuamos à conversa

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