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José Pacheco Pereira
©Marco DuarteJosé Pacheco Pereira

José Pacheco Pereira: "O Ephemera é um arquivo omnívoro. A gente come tudo e nunca se arrependeu"

A partir da biblioteca familiar, o investigador, cronista e professor está a criar o maior arquivo privado do país

Escrito por
Jorge Manuel Lopes
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José Pacheco Pereira lançou a bola de neve que se transformou no maior arquivo privado do país. O Ephemera, uma epopeia em crescimento exponencial, recolhe a memória particular e pública do país e não só. E tudo começou pela biblioteca da família, no Porto.

Quando percebeu que não seria cidadão residente no Porto por muito tempo?

Acabei por ir dar aulas para Lisboa, para o ISCTE, e isso fixou-me lá.

Nunca pensou em regressar e fixar-se cá?

Não pensei em voltar mas também de cá nunca saí. Há uma convenção no teatro japonês que já citei uma vez num artigo sobre o Porto: as personagens que levantam os pés são normalmente os mortos, almas danadas ou demónios; os que não levantam os pés são normalmente aqueles que se mantêm sobre a terra. E eu, de facto, nunca levantei os pés do Porto.

A semente para o que veio a transformar-se no Ephemera foi a biblioteca da sua família. Consegue descrever como era essa biblioteca?

Vivi sempre no meio de livros. Inclusive fisicamente, em casa dos meus pais – arranjei maneira de me mudar para o sítio onde estava uma grande parte dos livros, uma cave que não era bem uma cave. Isto significa que, além de ter lido muita coisa, conheci desde muito cedo o funcionamento de uma biblioteca. Ou seja, encontrar um critério para arrumar milhares de livros e ajudar a fazer as fichas.

Peças cruciais numa biblioteca.

As fichas na biblioteca do meu pai [Álvaro Pacheco Pereira] e do meu avô [Gonçalo Pacheco Pereira] compravam-se numa antiga tipografia, Marânus, que ainda era da família do Teixeira de Pascoaes, na Praça da República. Uma das primeiras coisas que me lembro de fazer é ir lá comprar as fichas, que eram muito grandes. Cheguei a fazer 20 ou 30 fichas. Eram bastante detalhadas e a que, em particular o meu avô, acrescentava notas sobre os livros que comprava em leilão, os preços… Deixou também no seu espólio os catálogos dos leilões e desenhos, feitos por ele, do leiloeiro e das pessoas que compravam.

Presumo que não demorou a criar a sua própria biblioteca.

Quando tive o meu primeiro dinheiro, gastei-o em livros. Ainda sei os primeiros que comprei: uma colecção da Inquérito, muito barata, de biografias de personagens gregas, o Sólon, o Licurgo, uma peça de Ésquilo… Foram os primeiros cinco livros [comprados] e numerei-os. Depois, alarguei a biblioteca a outro tipo de materiais: cartazes, fotografias, manuscritos.

Havia muito Porto nessa biblioteca?

O primeiro núcleo arquivístico que juntei teve a ver com a arte e os artistas no Porto na década de 1960. Incluindo desenhos originais do Ângelo de Sousa, José Rodrigues, catálogos e até, nalguns casos, os textos originais dos catálogos – textos do Eugénio de Andrade, e eu próprio também escrevi alguns na época. É um espólio que também tem correspondência, fotografias, manuscritos, dedicatórias. Entre as gravuras e desenhos e originais há alguns bastante raros, como uma experiência de gravura do Armando Alves da qual existe uma meia dúzia de exemplares. Guardei esse núcleo em caixas de camisas.

Como obteve esses desenhos?

O José Rodrigues desenhava nos cafés. Ele era um desenhador compulsivo, não conseguia estar sem estar a desenhar alguma coisa, e o que fazia às vezes era pegar num guardanapo, desenhava, metia o dedo no café (aquilo era uma porcaria) e sombreava. Desenhava alguns projectos de quadros, outros eram eróticos, satíricos, outros eram das pessoas no Café São Lázaro, que era onde a maioria destas coisas se passava e o grande centro onde vinham os professores de Belas Artes, os artistas e os estudantes mais promissores. Durante o dia juntava-se ali uma tertúlia à volta do Eugénio de Andrade, e [era o local visitado por] pessoas que vinham periodicamente de Lisboa, de artistas de teatro ao Jorge de Sena.

E à noite?

Ao fim da tarde e à noite era no Majestic. Aí apareciam o Jorge Peixinho, a Maria Clotilde Rosa, o Manuel Dias da Fonseca, Óscar Lopes, Arménio Losa, Ilse Losa. Depois havia outras mesas. Havia uma mesa com o Jorge Lima Barreto. E isto era feito de uma forma mais ou menos regular. 

Eram mesas com muitos nomes ligados à música. Curiosamente, a Arnaldo Trindade tinha instalações mesmo em frente ao Majestic.

Conhecia a loja porque na altura não era muito comum arranjar-se discos de música clássica. Que eu saiba, e baseado na minha memória, havia dois sítios onde era possível comprar música clássica de qualidade. Um era na Rua 31 de Janeiro, na altura Rua de Santo António, e outro era a Arnaldo Trindade, que também vendia electrodomésticos. Era uma loja grande e moderna para a época. Foi lá que a minha mãe comprou a primeira televisão.

Havendo essa semente da biblioteca familiar, não considerou a possibilidade de sediar o Ephemera no Porto?

Não. Com os anos, [o Ephemera] cresceu imenso, e comecei a procurar um local onde pudesse ver as coisas todas juntas – durante muito tempo o material esteve em cinco sítios diferentes. Pensei no Alentejo, em Lisboa, sempre que havia oportunidade de comprar uma casa [para o arquivo], mas chegava imediatamente à conclusão que não cabia.

Até surgir a Marmeleira.

O primeiro sítio que encontrei com as características que permitiam arrumar grande parte do espólio foi a Marmeleira, uma pequena aldeia no concelho de Rio Maior. É uma zona onde havia produção vinícola, que desapareceu toda, e ficaram muitas adegas que tinham grande espaço. Comprei uma casa em ruínas que tinha uma grande adega e comecei a levar as coisas para ali. Depois comprei a segunda, a terceira, a quarta, a quinta e a sexta, e mesmo assim está tudo cheio, mas foi a primeira vez que vi as coisas todas juntas. Quando o meu pai faleceu levei para lá os seus livros (fiquei praticamente com toda a biblioteca e espólio), embora uma parte deles ainda nem sequer tenha saído de um armazém que há na Marmeleira. É muita coisa.

O clique para que o Ephemera assumisse este formato foi a doação do espólio de Joaquim Barros de Sousa em 2009. O que encontrou nesse material que colocou toda esta máquina arquivista em movimento? 

Foi a primeira doação de um espólio quase integral, de uma pessoa que tinha tido uma vida política muito activa (e tem: hoje é o Provedor da Misericórdia da Figueira da Foz). Conhecia-o da actividade política e cultural da Figueira e ele ofereceu-me os seus papéis. Papéis que tinham muito interesse porque ele era bastante organizado e tinham toda a história política da Figueira da Foz. Foi do PS, depois passou para o PSD, foi um membro muito activo das candidaturas presidenciais do Eanes, do Cavaco. Pareceu-me ser [um espólio] que justificava dar um salto. 

Foi fácil chegar a um método satisfatório de organização de tanta informação?

Isto começou sem internet, no papel. Depois passou para o computador ainda ele tinha 48 K de memória (era o Spectrum). Comecei a fazer a base de dados em dBase, o que permitiu que ela fosse sempre absorvida pelas bases seguintes até ao dia de hoje. Nunca perdi informação electrónica. Tomei a iniciativa de fazer o blogue [Ephemera], que começou em 2009 e agora tem 21 mil e não sei quantas pastas. Até 2017 era uma biblioteca privada, uma coisa informal. O ano passado constituímos uma associação cultural sem fins lucrativos, o que facilita a realização de protocolos e acordos e até, em alguns casos, a entrega de espólios. Um desses espólios, muito interessante, é o aparelho técnico de falsificações da LUAR [Liga de Unidade e Acção Revolucionária, organização de combate à ditadura do Estado Novo], uma mala pequenina com tudo o que eles usavam para falsificar documentos.

Tem ideia do volume médio de papel que chega periodicamente ao Ephemera?

Entra metro e meio por semana. De tudo. Este é um arquivo omnívoro: a gente come tudo e nunca se arrependeu de fazer isso. Claro que nem tudo é importante. Também chegam espólios em completa desordem: temos um sítio na Ler Devagar [em Lisboa] onde estamos numa fase bastante avançada de organização do acervo do coronel Sousa e Castro que é muito importante para o 25 de Abril. Tem imensa documentação do Conselho da Revolução e de praticamente todos os outros sítios por onde ele passou, só que vinha num estado caótico e está a ser organizado por voluntários. Há dois grandes espólios que já foram inventariados na Ler Devagar.

O de Sousa e Castro e…

E uma correspondência de mais de quatro mil cartas de uma família de comerciantes do Porto, encontrada num sótão em Santos Pousada, um retrato que vai desde o início da actividade comercial, as dificuldades, os que foram para o Brasil, alguns deles no Brasil eram espíritas que tinham ido com a monarquia e vieram com a república… É um reflexo muito interessante sobre a vida comercial no Porto que vai até aos anos 1960, incluindo a parte da família que foi para Angola, apanha o início da guerra colonial e acaba por escrever, de lá, um testemunho directo bastante aliciante do que se passava, tentando acalmar a família [no Porto].

Há aí matéria para um romance histórico épico que atravessa décadas.

Na prática é um século. E esse [espólio] já está em condições de ser investigado.

Passado, presente e futuro

Marco Duarte

O que fez

Viveu na clandestinidade entre 1973 e Março de 75. Foi deputado do PSD entre 87 e 99 e em 2009-11. Passou pela vice-presidência do Parlamento Europeu (1999-2004) e foi nomeado embaixador português na UNESCO (2004).

O que faz

O longo e influente percurso como cronista e comentador desemboca, por estes dias, em páginas semanais no Público e na Sábado, e na Quadratura do Círculo (SIC Notícias); na TVI24 divulga o arquivo da Marmeleira em Ephemera.

O que vai fazer

Próximos volumes da Colecção Ephemera (Tinta da China): o primeiro ano da censura (1932); os bastidores da vida musical lisboeta nos anos 1940-50; e a última viagem clandestina ao Festival Mundial da Juventude (1973).

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