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Wolf Manhattan
© André TentugalWolf Manhattan

Wolf Manhattan: “Isto é tudo ficção”

João Vieira tem um novo projecto. Desvendamos a história por trás de Wolf Manhattan.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Esta história começa em Manhattan, Nova Iorque. É lá que vive Wolf Manhattan, um pobre diabo que arrenda um apartamento por cima de uma loja, labuta num emprego precário, tem sonhos e vozes na cabeça e uma respeitável colecção de discos para calar as vozes e embalar os sonhos. Pelo menos suspeita-se que seja respeitável, a julgar pelas canções que esses discos inspiraram, gravadas num quatro pistas e com uma guitarra muito mais velha do que o músico. No indie-pop sujo e a cheirar a garagem do seu álbum de estreia, homónimo, escutamos ecos dos Velvet Underground, de Jonathan Richman (com e sem os Modern Lovers), também dos Feelies, Daniel Johnston, The Moldy Peaches. Gente boa.

Quase tudo o que está escrito no parágrafo anterior é mentira. Ou melhor, é ficção. Na realidade, Wolf Manhattan não passa disso mesmo, de uma história. Que começou a ser contada por João Vieira ainda durante a pandemia, na sequência dos confinamentos e do cancelamento de boa parte dos espectáculos de apresentação de Body Electric, o terceiro álbum do seu projecto de electrónica desalinhada, White Haus. “Isso desmotivou-me um bocadinho”, confessa agora. “Tive aquele trabalho todo, estive a preparar-me para tocar ao vivo e depois dei dois concertos e aquilo morreu.” Desmotivado, fechado em casa, sem poder ensaiar, nem ver (quase) ninguém, começou a tocar e a fazer canções sem saber bem para quê, para quem. Hoje sabemos que eram para Wolf Manhattan.

Verdade seja dita, algumas canções já estavam feitas. “As mais antigas têm oito ou nove anos”, conta. “A ‘Voices In My Head’ é uma dessas. A ‘Never Want To See You Again’, outra. E a ‘Five Years’, que estava num caderno só com as notas e as letras, nem sabia a melodia daquilo.” Apesar de não serem novas, pouca gente as tinha ouvido. Tinha mostrado algumas a Fernando Sousa e Rui Maia dos X-Wife, a sua banda, mas não se enquadravam no que eles estavam a fazer. E outras ao músico, produtor e realizador André Tentugal, uns dos primeiros a encorajá-lo para fazer alguma coisas com aquelas maquetes. “Somos amigos há muitos anos e almoçamos muitas vezes juntos. Estávamos a trabalhar exactamente no mesmo sítio, no Arda, um estúdio em Campanhã (Porto)”, recorda. 

“[O André] estava sempre a dizer-me para apostar nestas canções”, continua. João Vieira lembra as palavras do amigo: “Eu ajudo-te. Fazemos aí uma selecção, vamos para estúdio e produzo isso contigo, dizia ele”. A pandemia e esta oferta foram os impulsos de que precisava para recriar velhas e escrever novas canções, num registo que o próprio descreve como “folk-punk-garage”, diferente qb do som mais electrónico dos seus outros projectos. “Escrevi mais umas 20 e tal canções [durante a pandemia]. Depois fui com 18 para estúdio e, dessas 18, pus 13 no disco”, contabiliza. E são algumas das melhores malhas que já teceu, sem truques nem ornamentos, com melodias memoráveis e refrães orelhudos; daquelas que funcionam “só com uma guitarra ou um piano, despidas ao máximo”.

“Isso foi desafio para mim”, admite. “Pensar até que ponto é que precisava de todas aquelas coisas a que me habituei [nos outros projectos]. Porque também me agrada trabalhar com White Haus, adoro compor a parte electrónica, sou fascinado por sintetizadores, isso tudo. E gosto imenso de estar com X-Wife, porque é aquele trabalho de grupo, aquele espírito de banda, que é completamente diferente. Gosto muito disso. Mas quis fazer outra coisa agora. Até porque acho que há aqui também um padrão que acaba por se revelar: mais ou menos de nove em nove ou de dez em dez anos, eu tenho um projecto novo. Os X-Wife surgem em 2002. Depois em 2012 é a vez de White Haus. E agora, em 2022, há Wolf Manhattan.”

O actual projecto, no entanto, vai muito além da música. E tudo começou, em parte, pela relação complicada que João Vieira – e cada vez mais gente – tem com as redes sociais. “Não as uso para a minha vida pessoal, mas às vezes sinto a pressão de alimentá-las. Isso chateia-me um bocado”, confessa. “Então achei que era interessante alimentar as redes com um alter-ego, com um personagem, com vários personagens. Por isso, criei o fantasma e o crocodilo e o coelho, que são elementos que vêm na capa do disco e que fazem parte deste universo. E eu próprio assumi uma persona, quase como se fosse um personagem de banda-desenhada, um Tintin ou um Charlie Brown ou assim. Achei que seria interessante criar todo esse universo, para alimentar as redes e os concertos e essas coisas todas.”

Com estes personagens surgiram pequenas histórias para as canções. “Isto é tudo ficção. Tentei não me inspirar em nada da minha vida e criar um personagem completamente novo. As canções não contam a história da vida dele, mas as suas experiências – dele e de todas aquelas pessoas que o rodeiam”, explica. E daí foi um passo até decidir fazer um livro, ilustrado pelo britânico Toby Evans-Jesra e inspirado pelo “cinema indie e as graphic novels”, duas grandes influências do cantor, que vai ser editado pela Stolen Books. Até já devia ter saído, mas não está fácil, “por causa do papel. Com estas crises todas e com as guerras há uma crise de papel no mercado. E isso tem atrasado muito as coisas”, sublinha.

“O Toby é um ilustrador inglês que eu conheci pela net. Fez todas as ilustrações, com indicações minhas. Mostrei-lhe as canções e falámos muito online. Depois apresentei-lhe uma maquete muito básica do jogo que fiz, e ele ilustrou aquilo tudo.” O jogo de que fala é descrito por João Vieira como um híbrido de Jogo da Glória e Trivial Pursuit, cujas peças, cartões com perguntas e tabuleiro se encontram no interior da edição em vinil de Wolf Manhattan, limitada e numerada, da qual existem apenas 200 cópias – incluindo umas quantas na icónica loja de discos e editora indie londrina Rough Trade. “Como é que se vende um vinil hoje, se a música está toda disponível online?”, pergunta, retoricamente. “É só pelo objecto? Então vamos tornar este objecto interessante. Vamos oferecer mais alguma coisa. Não apenas um disco, mas um jogo, com perguntas sobre as canções.”

E ainda falta escrever sobre os concertos. Nos espectáculos de apresentação, que chegaram a estar marcados para 28 de Outubro, na Zé dos Bois (Lisboa), e 3 de Novembro, no CCOP (Porto), mas tiveram de ser adiados para 3 e 10 de Fevereiro, respectivamente no Porto e em Lisboa, “por razões logísticas”, vão estar em palco três pessoas, “para replicar o disco e ser o mais fiel possível àquilo que está nas gravações”, segundo o autor. “Mas também é algo que poderei fazer em duo ou até sozinho. É um projecto que é facilmente adaptável, consoante as situações. Gosto dessa versatilidade. Porque nos tempos de hoje é difícil... As pessoas têm as suas vidas e nem sempre estão disponíveis para tocar”, justifica.

A primeira encarnação ao vivo de Wolf Manhattan, no entanto, será composta por João Vieira, no papel principal, e André Tentugal, que toca e ajudou a produzir todo o disco, e ainda Fernando Sousa, dos X-Wife, “que aqui não vai estar como baixista. E vai estar disfarçado. Aliás, vamos estar todos caracterizados em palco. Vamos estar irreconhecíveis. Quer dizer, eu vou estar mais reconhecível porque tenho de cantar. Mas os outros vão estar mesmo irreconhecíveis. Principalmente o André.” Estamos curiosos para ver o que vai sair daqui. No entanto, vai ser preciso esperar mais uns meses para matar essa curiosidade.

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