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Televisão, Séries, Crime, Drama, The Serpent (2021)
©DRTahar Rahim em The Serpent

‘The Serpent’: a história de um assassino que odiava turistas

A nova série da Netflix adapta a história real de Charles Sobhraj, um vigarista e assassino em série a operar no hippie trail asiático, nos anos 1970.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Charles Sobhraj é um manipulador. Reconhecido como intrujão, condenado como ladrão e falsificador, é sedutor, astuto, audaz, provocador, amoral. Mitómano, egomaníaco, talvez psicopata. Os adjectivos continuam, e já todos foram usados para descrever este homem, de ascendência indo-vietnamita e nacionalidade francesa. Um epíteto, contudo, destaca-se no meio do extenso rol: assassino em série. Lá pelo meio, porque não é esse o princípio nem o fim da sua história. Corresponde a apenas dois anos (1975-76) de uma vida ímpar que se cruza com celebridades do submundo como Carlos, o Chacal, torcionários nazis como Klaus Barbie, ou o antigo Presidente jugoslavo Slobodan Milošević, que morreu quando ainda era julgado por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. Sobhraj é uma figura. Aos 76 anos, a cumprir prisão perpétua no Nepal, volta a ver-se retratado no ecrã: depois do telefilme Shadow of the Cobra (1989) e da incursão por uma das suas fugas da prisão em Main Aur Charles (2015), a Netflix apresenta The Serpent, minissérie de oito episódios, co-produzida pela BBC One. É o momento por que, porventura, mais ansiava: fama global, imortalidade.

“A serpente” era o cognome por que Sobhraj era conhecido, dada a facilidade com que escapava às autoridades e até mesmo do cárcere. Hoje, sabemos os seus truques: cobrava favores, corrompia agentes e forjava documentos, em particular os passaportes que recolhia das suas vítimas mortais, recorrendo a eles para viajar entre os países do Sudeste Asiático. Tailândia, Nepal, Índia, Singapura, Malásia. Sobhraj movia-se pelo chamado “hippie trail”, o caminho percorrido pelas “flower children” desde o coração da Europa até esta região do mundo, à boleia, em carripanas comunitárias ou pelas vias férreas turcas e iranianas, cruzando as fronteiras porosas do Afeganistão e do Paquistão, em viagens longas, baratas, de autodescoberta. Gente decidida a ir ao encontro de outras culturas, curiosa com as comunidades locais, ávida, e por isso também mais crédula e desprotegida. Sobhraj aproveitava-se disso. Crisóstomo, comportava-se quase como o líder de um culto – quando o que pretendia de facto era ser líder de um gangue. Exigia ser o centro das atenções, talvez por se ter sentido preterido durante a infância em favor do meio-irmão mais novo (que também arrastaria para a marginalidade); e exigia lealdade. Se se considerava posto em causa, era hora de matar. Sem remorsos. Charles Sobhraj odiava hippies.

A forma como atraía e conquistava a confiança destes viajantes era particularmente retorcida: por norma, envenenava-os com bebidas adulteradas, oferecendo-lhes ajuda e guarida até à recuperação total. As vítimas ficavam agradecidas, em dívida, susceptíveis. Depois haveria de as matar, por afogamento, por overdose, ou queimando-as vivas. Foi o que aconteceu a um jovem casal holandês, Henk Bintanja e Cornelia Hemker, cujo desaparecimento pôs no encalço de Sobhraj um diplomata holandês em início de carreira, Herman Knippenberg, que viria a desempenhar um papel central na investigação aos seus crimes. The Serpent apoia-se nas indagações de Knippenberg (interpretado por Billy Howle, o filho da minissérie MãePaiFilho, que passou na RTP) para nos lançar num thriller criminal de elevada tensão dramática. Aqui, Charles Sobhraj (Tahar Rahim, nomeado para um Globo de Ouro por O Mauritano) é propositadamente contido, algo que tem sido notado por quem conviveu com ele (no Reino Unido, a série passou no início do ano). A ideia era impedir que a ficção acabasse por glorificar esta figura vistosa e carismática dos Seventies, embora a excentricidade esteja lá, sobretudo através da sua faceta de negociador de jóias. Para deixar claro o efeito que Sobhraj tinha sobre as pessoas, contamos com Marie-Andrée Leclerc (Jenna Coleman, Rainha Vitória), uma enfermeira franco-canadiana que se apaixonou por ele, e que se tornou a mais devota das suas seguidoras e a sua segunda mulher de facto.

Existem provas de que Sobhraj matou pelo menos 12 pessoas. A primeira delas é anterior a esta narrativa. Perpetrado no Paquistão anos antes, não é só no tempo e no espaço que esse homicídio inaugural difere dos restantes: a vítima era um taxista local; as restantes 11, concentradas nos anos de 1975 e 1976, eram todas jovens turistas ocidentais. Sobhraj montava-lhes uma armadilha deliberadamente. Os motivos para o fazer não são conhecidos. À excepção de uma série de entrevistas concedidas aos jornalistas Richard Neville e Julie Clarke, que originou o livro The Life and Crimes of Charles Sobhraj (1979), sempre negou a autoria dos homicídios. Choque cultural não foi: Sobhraj cresceu em Paris, para onde a família se mudou quando ainda era miúdo. A iniciação ao crime dá-se, aliás, na capital francesa. A compulsão para a violência, traço comum dos assassinos em série, também parece não ter sido. Quem o conheceu ensaia uma outra hipótese: as mortes faziam parte do estilo de vida que cultivava. Ele nega. E passou 20 anos preso na Índia por vários crimes, após estes acontecimentos, nenhum dos quais homicídio. Foi libertado em 1997, regressando a Paris (em 2003, sentindo-se talvez esquecido enquanto homem livre, decidiu voltar ao Nepal, onde era procurado por dois dos homicídios – acabou preso e condenado a uma pena de prisão perpétua). Na altura em que esteve na Europa, no final dos anos 1990, deu várias entrevistas, uma das quais a Andrew Anthony, que manteve contacto com Sobhraj desde então. O jornalista do britânico The Observer escreve agora que a série da Netflix e da BBC “faz um bom trabalho a juntar as peças da história e recria parte da atmosfera confusa e desordenada do hippie trail e da vida despreocupada dos expatriados europeus em Banguecoque. Mas o próprio Sobhraj permanece impenetrável”.

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