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Clara Não: “É preciso criar os filhos de uma forma feminista”

Clara Não não diz sim a tudo, mas disse-nos que sim quando lhe pedimos uma entrevista. Feminista e dona de um traço cómico-amoroso, as mensagens que ilustra carregam uma crítica por vezes satírica

Escrito por
Mariana Morais Pinheiro
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Por que razão Clara Não e não Sim?

Primeiro porque não [risos] e depois porque eu sou Silva, e Silva é o apelido mais comum em Portugal e no Brasil, segundo a Wikipédia – acho que nisto posso acreditar [risos] – e quando comecei a pensar em criar uma página e em fazer alguma coisa com o meu nome, redigi uma lista apenas com apelidos, porque Clara eu queria manter. Só que não gostava de nenhum. E cortei uns a seguir aos outros enquanto dizia: não, não, não. E de repente: ‘Por que não Não?’. E ficou Não. Esta é mesmo a história verdadeira. Com o tempo, comecei a reparar nas coisas à minha volta e a ficar mais indignada e, então, o Não fez ainda mais sentido.

Gostas de confundir as pessoas, portanto?

Eu faço de propósito. Há dois anos fiz uma exposição nos Maus Hábitos chamada Clara Não Está Online e as pessoas vinham ter comigo e perguntavam-me se eu não tinha wi-fi [risos]. A minha próxima exposição em Lisboa, na Apaixonarte, até 25 de Maio de Maio, chama-se Não é Hoje. A malta continua a ficar confusa. E, volta e meia, alguém me diz que é muito esquisito receber uma notificação no telemóvel a dizer: ‘Clara Não gosta da tua foto’.

O teu poema “O meu coração é esquerdino” vale a pena ser lido e aparece com frequência nas tuas exposições. Que ligação é esta com a palavra? És mais escrita ou mais ilustração?

Essa questão de “O meu coração é esquerdino” partiu da minha vontade de ler histórias a crianças no Hospital de São João. Enquanto resolvia burocracias para levar o projecto adiante, comecei a trabalhar a questão da memória. Como é que ela se intercala com a imaginação, a realidade e a percepção. Ganhei um prémio com esse paper, cujo título era “Da Memória à Imaginação Quantos Passos Vão”. Concorri ao IJUP – Investigação Jovem da Universidade do Porto e ganhei na minha área. Através disso comecei a investigar a memória física de escrever.

E o que é que descobriste?

Escrever é uma coisa que se torna automática mas não é natural, tens de aprender. E como é que eu conseguiria analisar uma coisa que já era automática para mim? A solução foi ensinar a minha mão esquerda a escrever. Liguei à minha professora primária, ela disse-me qual o método que fora usado para a minha mão direita – que era o Jean Qui Rit – e então ensinei a esquerda a escrever com o mesmo método. Essa minha teoria falava de como relacionar a realidade (a realidade como percepção, porque não tens acesso à realidade verdadeira), a memória e a imaginação. E estas relações vão condicionar tudo e fazem com que consigas pensar de forma diferente. Eu vou olhar para aquele banco de uma forma diferente se souber qual foi o designer que o criou. A partir dessa questão criei uma espécie de organização.

És capaz de escrita ambidestra e espelhada, ou seja, além de escreveres com as duas mãos, também escreves ao contrário, com as letras de cabeça para baixo.

Sim, escrevo de todas as formas e também uma palavra diferente com cada mão. Mas isso não consigo fazer durante muito tempo, senão começo a flipar bué. Eu sempre toquei instrumentos desde pequenina, por isso, consigo fazer com que a mão esquerda esteja coordenada com a direita. Toquei flauta e piano durante vários anos. Depois é uma questão de concentração e de treino...

De quanto tempo precisaste para dominar a técnica?

Uns meses. Copiei com a mão esquerda todo o livro da primeira classe do tempo do Salazar, porque ele não deixava ninguém escrever com a mão esquerda. Isso era coisa do Diabo. E o meu pai, que tinha tendência para escrever com a mão esquerda, foi proibido. E todas essas questões relacionadas com a memória começaram a mexer muito comigo. Isto tudo para te dizer que a escrita tem um papel tão importante para mim ao ponto de eu querer sentir fisicamente o que é escrever. E, respondendo à tua questão, se eu me considero ilustradora ou escritora: eu considero-me ilustradora, mas a questão é que eu ilustro aquilo que escrevo, mesmo que não tenha desenhos.

Através das tuas ilustrações tu passas mensagens que têm tanto de crítico, de cómico, como de sentimental. É um reflexo da tua condição de mulher, de artista, de ser social?

Sim, eu inspiro-me na minha vida. É tudo muito gráfico. Quando dou conferências, muitas vezes as pessoas vêm ter comigo e dizem-me: ‘Eu nunca pensei que tu fosses igual àquilo que aparece nas redes sociais’. Ya, é tudo verdadeiro, não estou a esconder nada. No princípio assustava-me um bocado. Apercebi-me disso nas primeiras entrevistas que dei quando alguém me perguntou se eu não me sentia exposta. Fiquei a pensar naquilo. Mas sim, é sempre um pouco autobiográfico.

Já foste criticada por isso?

Já me mandaram mensagens a dizer: ‘Eu não te admito que escrevas isto sobre mim.’ E eu respondo sempre que não estou a escrever sobre essa pessoa, mas sim sobre mim. A propósito do post “Se agradas a toda a gente a ti não te agradas”, houve quem dissesse que estava a instigar as pessoas a serem rudes. E não era nada disso.

Esse post, tal como o “Não tens que ser super-mulher a toda a hora”, passam mensagens claras. Como feminista que és, achas que as mulheres ainda estão moldadas segundo uma sociedade patriarcal, de quem se espera que sejam mães, esposas, trabalhadoras, supermulheres?

Cresci numa vila em Grijó, muito religiosa, onde há muitas senhoras mais velhas que têm uma ideia muito própria do que é ser mulher. Elas, antes de serem mulheres, são esposas e mães. Só na adolescência é que me comecei a aperceber que havia coisas que não estavam certas na minha perspectiva. Nos casamentos, um homem, o pai, entrega a mulher a outro homem, o futuro marido. Isto já diz muita coisa. Também gosto de me sentar de pernas abertas e até isso é mal visto. E, olhem, a minha mãe sempre me disse que cruzar as pernas faz varizes e nós temos varizes na família, por isso, não quero arriscar [risos]. Então em que ficamos? E é preciso falar da velha história que se não souberes cozinhar e limpar a casa nenhum homem te quer... Se ele também não souber fazer nenhuma dessas coisas eu também posso não o querer, não? Comecei a perceber que o pior do machismo está nas mulheres, porque quem me dizia isto não eram homens, mas sim mulheres. E isso é ainda mais grave. Estamos a lutar contra nós. É isso o que o patriarcado quer, que as mulheres lutem entre elas, eliminando-se umas às outras.

Quem te segue percebe, através dos teus desenhos, essa tua bandeira feminista. Depois de um início de ano terrível, em que mais de uma dezena de mulheres morreu vítima de violência doméstica, esta é a tua forma de intervir na sociedade?

Claro, mas também estou a colaborar com a associação PELE, que tem um projecto chamado Enxoval incluído no financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, o Programa PARTIS. Eles estão a trabalhar a questão do feminismo intergeracional. Eu recebo muitas mensagens privadas de pessoas que me contam a sua história de vida, maioritariamente mulheres, que me confidenciam que estão em relações abusivas e não sabem como sair delas, nem porque se mantêm nelas. Tento ajudar no que posso, não sou terapeuta, mas faço com que elas, pelo menos, não se sintam tão sozinhas.

Como podemos contrariar isto?

Tenho muito medo que as pessoas se acomodem. Estou um bocado preocupada porque se há uma onda de pessoas que estão de facto indignadas com estas coisas, também há uma onda de gente jovem que está a ir por um caminho totalmente contrário e conservador. Exemplo disso são os países da Europa em regimes semiditaduras que educam crianças dessa forma. E isto é alarmante. O feminismo é igualdade. É pôr a mulher no lugar dela, ou seja, num lugar igual ao do homem, com o mesmo valor. Igualdade é não olhar a orientações sexuais, cores de pele e por aí fora. É preciso começar a criar os filhos de uma forma feminista.

Onde é que podemos ver o teu trabalho?

Vou estar na galeria Senhora Presidenta, até 6 de Junho, com uma exposição de azulejos. E vou lançar um livro chamado Miga, Esquece Lá Isso - Como transformar problemas em risadas de amor próprio.

Podes contar mais?

Apresenta uma narrativa construída a partir de ilustrações que tiveram origem nos meus cadernos de viagem. São reflexões autobiográficas de diferentes de momentos diferentes da minha vida, que funcionaram como um processo de autoconhecimento, e são uma forma muito própria de rir dos problemas. Fala de amor - o próprio e os outros -, de indignação, feminismo, tristeza, saudade, sempre com um toque de humor.

Onde é que és Clara Sim?

Não sou [risos]. O Clara já é o meu sim.

Como seria um dia perfeito no Porto?

© Marco Duarte

“Um dia perfeito seria acordar cedo, conseguir ir ao ginásio e, depois, comprar uma planta no Mercado do Bolhão. Almoçaria na Gina ou no restaurante dos Maus Hábitos, o Vícios de Mesa. Voltava para casa para trabalhar, mas, não sei muito bem explicar o porquê, também gosto de trabalhar no café Jerónimo, na Trindade. Lanchava na pastelaria Vale Doce, mesmo aqui à beirinha, e ia à loja do Zé comprar legumes para fazer um arroz para o jantar (gosto muito de arroz, ou basmati ou thai). Para ser mesmo perfeito, à noite via Anatomia de Grey. Sou fã.”

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