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Vanessa Ribeiro Rodrigues
© Marco Duarte

Vanessa Ribeiro Rodrigues: "Ela voltou a traficar para subsistir e cuidar da filha”

Entrevista à escritora, documentalista e autora do livro "Ala Feminina"

Escrito por
Jorge Manuel Lopes
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Tem base no Porto mas parte com frequência, mundo afora, para aprender mais. Dos anos no Brasil trouxe parte dos relatos que se lêem em Ala Feminina, livro que dá voz a mulheres presas. O seu futuro está no cinema documental.

A origem deste livro está ligada a um acidente de percurso: era suposto entrares na prisão masculina de Bangu, no Rio de Janeiro, em Novembro de 2010, mas o clima de tensão entre polícia e facções criminosas alterou os planos e visitaste a prisão feminina de Talavera Bruce. Entretanto, já entraste numa prisão masculina?

[A ida a Bangu] tinha a ver com um projecto do Afroreggae [ONG que promove inclusão e justiça social nas favelas e prisões] e num contexto político e social de entrada das unidades de polícia pacificadora no [conjunto de 13 favelas] Complexo do Alemão. Ia à boleia da ONG para tentar falar com lideranças do Comando Vermelho [organização criminosa] sobre o que se estava a passar no Rio de Janeiro.

Mas a situação era perigosa e acabaste na Talavera Bruce. Fechou-se uma porta e abriu-se outra, com o potencial de histórias que se lêem em Ala Feminina.

Entrar numa penitenciária para mulheres levou-me para outro horizonte em que não tinha pensado: o universo da reclusão feminina e de eu ser mulher e estar a entrar numa prisão feminina. O que senti foi, acima de tudo, a urgência enorme que as mulheres tinham em contar as suas histórias a uma jornalista, mulher, que lhes era desconhecida e que elas podiam suspeitar que nunca mais iriam ver na vida.

Esse desconhecimento facilitou a conversa?

As barreiras quebram-se nos primeiros 30 segundos, um minuto. Há um jogo inicial, um afastamento entre pessoas que não se conhecem, mas a partir de certa altura eu ainda perguntava coisas mas elas próprias já introduziam alguns assuntos. Nunca perguntei sobre o que as tinha levado para o contexto prisional mas…

Elas acabam por contar espontaneamente.

Algumas sim, e com vontade de falar sobre tudo: filhos, família, companheiros, o que querem para a vida futura. Uma delas, a Joyce, detida por cumplicidade num assalto à mão armada [realizado pelo namorado], diz que no primeiro mês em que esteve encarcerada ainda quis estar com o companheiro, com direito a visita íntima. “Eu tinha que estar com ele só para entender o que tinha acontecido. A partir daqui não quero ter mais nada a ver com ele.” Isto é, claramente, a imposição do muro do “eu não tenho nada a ver com este mundo; vou pagar por este crime mas quero mudança”.

Um livro destes, feito por um homem, seria muito diferente?

Não tenho uma resposta categórica. O que posso convocar é conversas que tive com o Hugo Cruz, que assina o posfácio do livro e é encenador [da Associação PELE, do Porto]. Quando o Hugo tentou fazer um trabalho em Santa Cruz do Bispo, a peça Inesquecível Emília [2012], a partir de cartas que as mulheres tinham escrito num contexto de reclusão, ele diz que teve muita dificuldade em comunicar com elas quando chegou ao estabelecimento prisional. “Mas não era em mim, Hugo, que elas não confiavam. Elas não confiavam era na figura do homem.” Porque muitas destas mulheres, quando vão parar a um contexto prisional, vão quase como uma extensão da vida dos companheiros. Elas são enredadas nessas lógicas de cumplicidade. Esta não é a regra geral mas é o que acontece à maioria das que estão no Ala Feminina.

Para este livro falaste com 17 mulheres, que estavam presas ou que já haviam passado por essa experiência, de cadeias no Rio de Janeiro (em 2010),Tires (2012) e Santa Cruz do Bispo (2014). Tens curiosidade de saber o que lhes aconteceu depois desse contacto?

Mais do que curiosidade, tenho uma vontade enorme de devolver este trabalho a essas mulheres. De tentar chegar a elas para devolver a confiança que tiveram ao contarem-me as suas histórias. Estamos a tentar que as mulheres de Santa Cruz do Bispo tenham uma cópia do livro. Em relação àquelas com quem não tenho contacto, vou tentar através de entidades chegar até elas, pelo menos para lhes fazer chegar o livro.

As conversas aconteceram há alguns anos. Como achas que receberão este documento?

Quando elas falaram comigo estavam num contexto de vida. Não sei se fará sentido eu entrar num novo contexto delas. Faço parte de uma outra existência que tiveram e que encerraram. Sinto obrigação de lhes “devolver” este trabalho para eu também fechar este ciclo, mas não tenho curiosidade de saber como é o pós-. Acho que é uma questão muito delas.

Algumas das mulheres neste livro são reincidentes.A atitude e o discurso delas diferem muito de quem se vê pela primeira vez atrás das grades?

Quando se fala de casos de reincidência está-se a falar, acima de tudo, de tráfico de droga. Em relação à Bárbara, uma das portuguesas [o livro contém histórias de nove lusas, três brasileiras e uma uruguaia, uma venezuelana, uma angolana, uma romena e uma colombiana] com quem estive em Tires, ela falava com uma serenidade e mágoa grandes em relação ao facto de ser reincidente.

Mágoa de quê?

Dizia que a reinserção social não a ajuda. Ela cometeu o crime (tráfico de droga); saiu; por ser ex-reclusa não conseguiu arranjar trabalho; e teve de seguir o que ela diz ser o caminho mais fácil (voltar a traficar) para ter um rendimento para subsistir e cuidar da filha. É quase um círculo vicioso.

A experiência da primeira detenção e encarceramento é aqui várias vezes descrita como algo surreal, que não se consegue processar.

Na descrição da Claudia, que é uruguaia, tento criar uma imagem da sensação que é sermos apanhados: ela sai do Uruguai, faz bastantes horas de viagem, cruza o Atlântico, chega [a Portugal], dá os primeiros passos numa terra onde nunca esteve e que jamais vai ver a não ser do interior de um estabelecimento prisional, e quando é detida é como se ainda estivesse em jet lag. Quando estamos em jet lag podemos sentir náusea, sono, dor de cabeça, mas tudo é muito onírico, quase como se não estivesse a acontecer.

É tudo muito nublado.

Muito nublado no sentido de nos criar uma narrativa paralela: o meu corpo está aqui e agora mas a minha mente está noutro sítio. A maioria destas mulheres tem essa sensação. A ficha ainda não caiu.

Foste correspondente no Brasil do Diário de Notícias e da TSf entre 2004 e 2010. Os relatos de violência contínua que de lá chegam em 2018 e o estado preocupante da democracia surpreendem-te?

Sempre existiu um contexto “quente”. O que se está a passar tem a ver sobretudo com duas lógicas que dialogam desde sempre. O Brasil emergiu, como democracia, de uma ditadura com lógicas paramilitares, de milícia. A própria polícia tem uma herança de lógicas repressivas da ditadura. Nada disto ainda foi sanado em termos geracionais e de formação, e no Rio isso é gritante, mas tanto há milícias no Rio como no Sul, no Nordeste.

Qual é a outra lógica?

Tem a ver com a corrupção sistémica, a conivência entre políticos, polícia e lógicas paramilitares. Não me surpreende o que está a acontecer. O activismo e a liberdade de expressão ainda são reprimidos. O que aconteceu com a Marielle [Franco] é claramente uma assinatura. Ela estava marcada para morrer. Isto acontece sistematicamente, sobretudo no Rio. As milícias são um verdadeiro crime organizado no Rio de Janeiro. E há uma criminalização da favela e da pobreza, quando o verdadeiro crime organizado está nas altas instâncias. É endógeno, um cancro que não é possível erradicar, e quem tenta fazer diferente e dar voz a lógicas de direitos humanos fica logo mais vulnerável e pode ser apagado. Todos os dias morrem muitos jovens sob o jugo de forças militares com carta branca do Governo.

Como se dá a volta a isso?

É muito difícil encontrar soluções a curto prazo. Não há uma mobilização nacional para a mudança. É como se se pensasse que um dia as coisas vão dar certo. Mas para que dê certo tem de haver uma geração que consiga implementar uma mudança, cortando os elos da corrupção sistémica, da força militar e do silenciamento.

Voltarias para o Brasil por um período tão longo?

Nunca digo nunca a nada [risos], mas no contexto actual sinto-me bem em conseguir manter a ponte aérea com o Brasil. Vou lá uma, duas vezes por ano, e fico durante um mês, mês e meio. O meu país é Portugal e adoro morar no Porto; é a minha base.

Para que outro sítio do mundo gostarias de partir para contar histórias?

Gostava de passar uma temporada nos Estados Unidos. Porquê? Têm um padrão de pensamento que considero diferente do mindset europeu e me ajuda a pensar. É tudo muito orgânico, enquanto que nós somos mais conceptuais. Se pudermos agregar formas de estruturar o pensamento e de percepcionar completamente distintas, estamos a enriquecer o nosso olhar e a tolerância sobre o outro.

Tens obra feita na rádio, imprensa, em livro e também em filme: em 2016 nasceu Baptismo de Terra, documentário que realizaste em redor de histórias de portugueses que vivem no rio de Janeiro. Qual é a forma de expressão em que te imaginas a investir mais daqui em diante?

O cinema documental é o meu caminho. É a linguagem que mais me completa. Porque tem a pesquisa, a escrita, a criação visual. E porque me permite ser criativa e ter um cunho autoral sem deixar de ser, sobretudo, um trabalho de equipa.

Passado, presente e futuro

© Marco Duarte

O que fez

Foi correspondente da TSF e do Diário de Notícias no Brasil entre 2004 e 2010. Passou também um ano na Jordânia, de onde resultou a reportagem radiofónica "Palestina, Diários de um Lugar Incerto", premiada pela UNESCO em 2015.

O que faz

Acaba de lançar o livro Ala Feminina, produto da conversa com 17 mulheres de sete nacionalidades, presas ou que já passaram por essa experiência, em cadeias no Rio de Janeiro (2010), Tires (2012) e Santa Cruz do Bispo (2014).

O que quer fazer
Inicia este mês em Moçambique a pré-produção do próximo documentário, sobre "a relação de Portugal com Moçambique, durante a Guerra Colonial e hoje, a partir de uma lógica de confronto entre presente-viagem e passado-memória".

 

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