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Musica, Brasileira, Bebel Gilberto
©Luigi & IangoBebel Gilberto

Bebel Gilberto: “É muito difícil estar no Brasil neste momento”

Entre perdas pessoais e a crise política e pandémica do Brasil, Bebel Gilberto lançou um novo disco onde encontra a calma no meio da tempestade. Falámos com ela.

Escrito por
Ana Patrícia Silva
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Carioca de coração e nova-iorquina de nascença, Bebel Gilberto é sobrinha de Chico Buarque e filha de João Gilberto e Miúcha, mas nunca se acomodou na fama da família. A cantora e compositora conseguiu conquistar o seu espaço, construir a sua própria identidade musical e ganhar projecção internacional. Bebeu da fonte familiar da bossa nova, género do qual o seu pai foi pioneiro, e expandiu-a. No balanço lânguido da bossa nova incorporou uma gentileza electrónica, uma receita relativamente inexplorada quando lançou o álbum Tanto Tempo, no ano 2000.

O disco que editou este mês, Agora, lembra essa sofisticação suave e sensual. “Acho que esse som acabou me perseguindo de uma certa forma”, conta Bebel Gilberto à Time Out. “Quando não se tem preconceito com a música electrónica, fica mais fácil, e aí a gente se permite fazer novas experiências musicais. Só assim elas se tornam ainda mais ousadas e impossíveis.”

O novo disco foi criado em parceria com o produtor Thomas Bartlett, que já trabalhou com nomes como Norah Jones, Sufjan Stevens e St. Vincent. “Comecei a trabalhar nesse álbum sem saber que estava fazendo um disco. Estava chegando de Itália com muitas ideias, com melodias novas para futuras músicas em geral. De repente, percebemos que já tínhamos 17 músicas. Seleccionámos 11 canções e são elas que lustram este lindo álbum.”

O som evoca um clima de sonho, de fantasia e nostalgia, diluído em tonalidades delicadas. “Eu e o Thomas temos uma característica melancólica e somos também grandes fãs de trilhas sonoras de filmes antigos. Acho que tudo isso se reflectiu no disco. Eu trabalhei muito nos arranjos e todos os efeitos que estão nessas canções. Este trabalho foi muito prazeroso, trabalhar com Thomas é um luxo.”

Apesar disso, foi uma longa jornada de três anos para finalizar este disco. Pelo caminho, perdeu algumas das pessoas mais importantes da sua vida. Primeiro, a morte do melhor amigo, o compositor Mario Vaz de Mello. Depois, a mãe. Seis meses depois, morreu o seu pai, João Gilberto. Entregar-se à música foi decisivo para digerir a dor dessas perdas. “A música é sempre uma forma de alívio. O disco foi feito durante todo esse processo. Se parar para pensar, começo realmente a duvidar que possa ter passado por tudo isso com tanta serenidade. Nada como fazer 50 anos e levar algumas rasteiras, curando as cicatrizes da vida devagarinho. Isso só faz a gente mais forte.”

Depois de viver em Nova Iorque durante cerca de três décadas, e de partir à descoberta do mundo, Bebel Gilberto está de regresso ao Brasil. A altura não é a melhor, confessa. “É muito difícil estar no Brasil neste momento, não dá para pensar com calma. O que mais me preocupa é a crise política que estamos vivendo, sem paz no país, em que é impossível pensar num futuro melhor. Sem confiança no presidente e na política deste país, fica muito difícil imaginar o futuro. Mas neste momento eu estou aqui. Vivendo dia após dia, sem pensar no amanhã.”

Mais uma vez, a música é o seu refúgio. Agora, com um disco para mostrar ao mundo e com um novo amor (uma shih-tzu de quatro meses que já tem uma conta no Instagram), Bebel Gilberto encontrou um novo alento. “Está a ser maravilhoso poder divulgar o Agora com tranquilidade e tempo – é só nisso que eu penso. Os outros momentos que sobram são apenas para cozinhar e cuidar da minha pequena cachorrinha Ella, o meu maior amor!”

Até nos momentos mais turbulentos, como os que viveu e os que atravessamos, Bebel Gilberto consegue encontrar a calma no meio da tempestade e transmitir tranquilidade através da sua música. A sua serenidade e leveza são um belo bálsamo para estes tempos.

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  • Música

Ouvir Martinho da Vila é mergulhar a fundo nas múltiplas identidades que compõem o mosaico cultural brasileiro. A sua música é do povo, é grande por ser simples e por querer entrar na vida das pessoas. A sua sabedoria octogenária já passou por muito, ao longo das últimas décadas. A ditadura quis silenciá-lo, mas ele resistiu. Com a bonita cadência do seu samba, enfrentou a pressão da censura e ensinou que a alegria também faz parte da resistência.

O Brasil é a sua inspiração. A sua vida tem sido moldada em Duas Barras, a sua terra natal no interior do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, o bairro carioca onde deu os primeiros passos numa escola de samba, e na Barra da Tijuca, onde hoje vive.

Mas as suas viagens pelo mundo da lusofonia deixaram um sabor especial. Martinho da Vila é um brasileiro que reflecte a cultura dos seus ancestrais. Nos discos e nos livros, o sambista e escritor conecta o país às suas raízes africanas. Dedicou-se à afirmação da identidade negra e a lutar contra a discriminação racial. Tornou-se um defensor do movimento negro no Brasil, consciente da capacidade do povo brasileiro para criar e transformar.

Neste concerto, com banda completa em palco, Martinho da Vila vai visitar os maiores sucessos de 50 anos de carreira e mostrar os temas do seu álbum mais recente, Bandeira da Fé. É um disco de esperança e de saudade, onde cabe o Brasil, África e Portugal.

Ecléctico nos seus vários ritmos, vai do samba ao forró e do rap a um abraço ao fado. O Fado das Perguntas é uma homenagem aos milhares de brasileiros que procuram uma vida melhor em Portugal – e que aqui descobrem o que é o frio e a saudade e se consolam com bagaço, jaquinzinhos e pastéis de bacalhau. O álbum retrata o momento actual brasileiro e exalta o carnaval, a mulher, o samba e a negritude, abrangendo também reflexões pessoais. Martinho da Vila pode estar desencantado com o seu amado Brasil, mas ninguém apaga a festa que habita dentro dele.

Conheceu Angola em 1972, numa altura em que o país ainda lutava pela independência. É o país dos seus bisavós, é a terra da sua ancestralidade africana. De que forma isso o influenciou como artista e como pessoa?

Quando estou em Angola ou Portugal, sinto-me como um cidadão destes países. Recebo influências e tento influir. Lembro da emoção dessa primeira visita até hoje, e ela se repete de cada vez que retorno ao país. No início dos anos 80, tive a alegria de organizar uma digressão de artistas angolanos no Brasil, chamada O Canto Livre de Angola. Foi a primeira vez que o público brasileiro teve acesso a um pouco da cultura africana. Esses concertos deram início a uma parte cultural do movimento negro no Brasil, algo que até hoje rende frutos.

Conhecer África ajudou-o a conhecer melhor o Brasil?

Ajudou muito. Há uma África no Brasil e um Brasil na África. Os brasileiros deveriam visitar mais os países africanos. Além dos muitos laços que nos unem, são destinos muito interessantes e bonitos. Eu estive em vários países africanos como Moçambique, Nigéria, Cabo Verde, África do Sul e Benim. As minhas andanças por África viraram um livro, Kizombas, Andanças e Festanças, que escrevi há quase 40 anos.

Ao longo da sua carreira, tem sido um importante difusor da cultura negra no Brasil. Como é ser negro no Brasil hoje?

É melhor que antigamente, mas há desconfortos.

Viveu no tempo da ditadura militar no Brasil, conhece bem a dor de viver na ditadura e na censura.Tem receio que a história volte a repetir-se?

Não tenho medos. Não há clima para ditaduras militares na América Latina.

Num momento como aquele que o Brasil está a viver, como é que a música pode ajudar?

Pode colaborar consciencializando. A música tem poder transformador.

Depois de 50 anos de carreira, o que lhe dá mais prazer na música e nos palcos?

A música não foi exactamente um projecto de vida, um sonho. Foi uma coisa que, aos poucos, foi acontecendo... E eu fui me esmerando. Ainda tenho muitos sonhos prazerosos, mas não devo revelar. Pretendo, enquanto tiver voz, continuar cantando. Conviver com jovens, aprender mais do que ensinar e levar a vida devagar, devagarinho.

Além de uma longa carreira na música, tem também uma longa carreira na literatura, com mais de 15 livros editados. Como leitor, o que é que mais gosta de ler?

Gosto de ler livros de romances, contos, poesias e leio diariamente artigos em jornais impressos.

O que podemos esperar deste concerto?

Projectei um show bonito visualmente, mas sem pirotecnia, que deve emocionar e alegrar o querido público português. Será um show baseado no meu álbum mais recente, Bandeira da Fé, com músicas novas, inclusive o Fado das Perguntas, uma nova composição minha. Os meus grandes sucessos serão apresentados, entre eles Casa de Bamba, Canta Canta Minha Gente, Mulheres e Madalena do Jucu. Também está incluída a canção Dar e Receber, que gravei com a fadista Kátia Guerreiro [para o álbum Brasilatinidade, em 2005].

O que é que mais gosta de fazer quando está em Portugal?

Gosto de andar pela cidade durante o dia, degustar a rica culinária do país e, à noite, ir a uma casa de fados, preferencialmente vadios, com desgarrada e tudo o mais. Eu adoro Portugal e principalmente o público português, sempre carinhoso comigo e vibrante nos meus shows. A minha admiração por Portugal começou ainda pequeno, na escola primária, ao estudar História. Nessa época eu já sonhava em conhecer este belo país. Em Portugal, a comunidade brasileira continua a crescer cada vez mais.

Que mensagem gostava de deixar aos brasileiros que estão a viver em Portugal?

Brasileiros! Estando em Portugal, vocês estão em casa. 

  • Música

Há uma música em que dizes para aproveitarmos este disco porque pode ser o último…

Isso tem a ver com o facto de os discos estarem a morrer. É um bocado ingrato fazer maratonas de dois ou três anos de trabalho para depois aquilo ser consumido na voragem da novidade. Tens que competir no meio do ruído das redes sociais, numa arena de vaidades, com o que te é mais especial e precioso. Será que vale a pena? Se puser uma foto do meu almoço ou do meu bebé, tenho mais likes do que com a música que fiz com as minhas emoções e pensamentos. Vês muitos músicos com problemas de depressão e suicídio porque é muito ingrato teres que “vender” a tua arte num mercado em que se vende de tudo. É um bocado perverso, parece que tens de perder a tua privacidade para ganhar a atenção das pessoas.

Já tens mais de 15 anos de carreira. Achas que tens tido o reconhecimento devido?

Por um lado sim, por outro não sei. Muitas pessoas começaram a ouvir hip-hop porque a minha música chegou a públicos diferentes. Ter pessoas de diferentes gerações nos meus concertos foi uma prova de que consegui essa transversalidade. Mas dentro do Capicua acaba de editar ‘Madrepérola’, um disco que explora um lado mais solar e que coincidiu com a sua primeira gravidez. Ana Patrícia Silva conversou com ela sobre ser mãe, mulher e rapper num mundo pouco amigo das mulheres. João Saramago iluminou-a com a luz do Porto. “O Porto não está a defender os portuenses” entrevista A Capicua hip-hop houve momentos em que não tive esse reconhecimento. Acho que uma parte do público e dos meus pares não se identifica comigo nem com o estilo de rap que eu faço, mais poético, mais político-social. Quanto mais longe cheguei, menos próxima estive desse reconhecimento. Por outro lado, há muita gente que percebe que andei a mostrar que é possível uma mulher ter uma carreira longeva no hip-hop.

A história do hip-hop em Portugal mostra que, além de haver poucas mulheres a fazer rap, são poucas as que conseguem resistir no tempo.

Porque é difícil, de facto. Tens que quebrar a barreira da falta de auto-estima. Para uma mulher é mais pesado, culturalmente, ter a segurança de dizer que o meu trabalho é válido, que vale a pena mostrá-lo ao mundo. É preciso contrariar uma socialização que nos atira para o auto-boicote permanente.

Somos ensinadas desde pequenas a não acreditar nas nossas capacidades.

Sim, e de nos valermos não dos nossos talentos, mas do nosso aspecto físico. Somos mais estimuladas para casar e ter filhos do que para ter uma carreira. É uma corrida de obstáculos, é preciso resistência.

Como é que conseguiste ter essa resistência?

Pela minha personalidade, pelos meus pais, pela educação que tive, pela militância política e associativa na adolescência. Acho que fui sempre estimulada a ter espírito critico, a valer-me dos meus talentos, a ser uma pessoa independente, a ser uma mulher feminista. Houve momentos em que foi difícil, mas por um conjunto de factores – alguns de sorte, outros de trabalho, uns de privilégio, outros de mérito – consegui. Também tive a sorte de ter começado com a M7 [a rapper e humorista Beatriz Gosta], tinha uma mulher ao meu lado e juntas fomos rompendo obstáculos. E por ter encontrado um produtor, o D-One, que sempre trabalhou connosco de igual para igual. Quando estás sozinha, é muito mais difícil. O mais importante é criar uma rede de apoio. Começar é difícil, resistir é hercúleo.

O que é que a maternidade te ensinou sobre o empoderamento feminino?

Aprendi que é importante conectarmo- -nos com o nosso lado biológico. Eu sou socióloga e tenho essa perspectiva de que as diferenças de género são culturais e que as diferenças entre sexos são também muito mais construídas do que biológicas.Mas quando me reencontro com esse lado biológico da reprodução, do parto e da amamentação, acho que as diferenças não nos devem distanciar ou hierarquizar, mas devem encher as mulheres de orgulho. Quando conseguimos comandar o nosso próprio processo reprodutivo, saímos com uma auto-estima muito reforçada, sentimo-nos empoderadas e invencíveis. Ser mãe é muito exigente em termos de entrega, de cansaço, de falta de liberdade. Mas, ao mesmo tempo, é lindo, é poético, é a coisa mais intensa que podemos experimentar.

Assusta-te trazer um filho a este mundo? Ou é um acto de optimismo, de acreditar que o mundo vai melhorar?

Se não consegues fazer um mundo melhor para os teus filhos, faz filhos melhores. Acho que todas as gerações passam por essa ideia de que o mundo está demasiado feio para acrescentarmos mais pessoas. Do ponto de vista ecológico, de facto somos muitos e não devíamos ter mais filhos, mas, se nos deixarmos dominar pelo medo, deixamos de viver.

O que é que temos de ensinar aos nossos filhos para serem pessoas melhores?

Uma educação feminista é essencial para homens e mulheres. Mas a educação é um quotidiano de pequenas lições e de grandes exemplos que vamos dando sem sequer ter consciência disso. Eles acabam por absorver a nossa forma de estar no mundo. Temos de ser o exemplo mais perfeito possível, dentro das nossas limitações enquanto seres imperfeitos.

Alguma vez te prejudicou assumires que és feminista?

Em termos estratégicos, é sempre melhor quando os músicos são anti-sépticos, quando não opinam sobre as coisas e fingem que está sempre tudo bem para não chatear ninguém e vender o máximo possível. Essa nunca foi a minha postura, eu sempre encarei a música como um megafone para as minhas causas e as minhas preocupações. Um artista, no verdadeiro sentido do termo, é muitas vezes incómodo, mesmo que isso custe uns concertos a menos. Todas as pessoas que têm um microfone na mão têm uma responsabilidade. Há que viver com isso, sem que se torne demasiado pesado ao ponto de não termos liberdade de criar, não deixar que as causas eclipsem o nosso trabalho artístico.

A propósito do que aconteceu com o Valete [a música e o vídeo de “BFF” foram acusados de normalizar a violência contra as mulheres], até que ponto é que a liberdade de expressão e a liberdade artística podem servir como escudo?

Desde que não entrem na difamação, no discurso de ódio, em coisas que estão prescritas na lei como limites, os artistas são completamente livres. Mas o artista está num contexto cultural e social, que é determinado e que não pode ser ignorado. Eu sou livre de criar e as pessoas são tão livres quanto eu de comentar e criticar. É um jogo que toda a gente joga quando está no espaço público. Mas com as redes sociais criam-se ondas de reacção que acabam por ser desproporcionais.

Poderia ter sido uma conversa importante.

Sim, e não foi essa conversa que aconteceu.

Também porque ele reagiu daquela forma, com ameaças. Surpreendeu-te a reacção dele às críticas?

Custa-me comentar esse caso em particular porque é uma pessoa que eu conheço pessoalmente, tenho menos capacidade crítica. O que eu acho é que a discussão poderia ter sido importante e acabou por ser uma gritaria. Às vezes temos a oportunidade de ter discussões interessantes sobre essas questões da liberdade criativa, do politicamente correcto no bom sentido do termo, da importância do simbólico, da forma como as minorias têm que ser protegidas de determinados tipos de banalização de ataques e de criarmos uma linguagem e uma forma de estar em cidadania mais inclusiva e justa. Mas depois entramos nestas espirais em que uns se ofendem com tudo e não há conversa possível.

Tens uma música sobre a situação actual do Porto, a “Circunvalação”. Como vês o rumo que a cidade está a tomar?

Essa música fala do Porto real e não do Porto postal. Do Porto dos portuenses que todos os dias vivem a cidade. Nada contra os turistas, mas o bem-estar das pessoas foi subjugado aos interesses do turismo enquanto indústria de consumo rápido e de dinheiro rápido, com impactos muito profundos no quotidiano.

O Porto que sempre conheceste está a desaparecer.

Sim, a cidade descaracteriza-se e depois todas as cidades europeias são iguais, todas têm as mesmas lojas, os mesmos cafés, as mesmas cadeias de hotel. Já para não falar do bullying imobiliário, do lixo na cidade, da sobrecarga dos transportes públicos. Se formos ver o que a UNESCO escreveu quando atribuiu o título de Património Mundial da Humanidade ao centro histórico do Porto, dizia que era um conjunto que valia por ser castiço e por ser vivido. Não pela sua monumentalidade, mas por ter um tecido vivo de pessoas que habitam aquelas casas, que têm a roupa a secar à janela, têm as mercearias, os pequenos restaurantes. Vamos perder aquilo que a cidade tem de mais valioso, que é o carácter, com uma gente muito orgulhosa de si. É especialmente irónico, porque o Porto sempre foi uma cidade que se bateu pela liberdade. Os portuenses sempre defenderam o Porto até ao fim! Acho que agora o Porto não está a defender os portuenses. Era bom pararmos com essa coisa da cidade acontecimento, do branding, do marketing urbano, da cidade postal e pensar: como é que conseguimos reverter este dinheiro que estamos a criar com o turismo a favor das pessoas que vivem aqui? Como é que vamos minimizar o impacto deste consumo rápido e desta voragem turística? Temos de começar a pensar nisso, senão não vai ser fácil.

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  • Música

A alma inquieta de Manel Cruz já o levou a projectos como os Ornatos Violeta, Foge Foge Bandido, Pluto ou Supernada. Vida Nova é o livro-disco que apresenta na Casa da Música no domingo 28.

Como é que este disco começou?

Não lançava um disco há oito anos e não é que tenha desistido de fazer música, mas ia nadando. Na reunião dos Ornatos estive só naquilo e depois mais um ano ou dois a gastar o dinheiro que ganhei. Senti aquela pressão de fazer alguma coisa e entrei num capítulo depressivo, não me saía nada. Comecei então a vir para o estúdio tipo função pública. Fazia uma música por dia e muitas deitava logo ao lixo. O trabalho que fazes para trás serve para realização pessoal, mas tem um lado perverso: não te vai servir para sempre. Um artista acaba por se sentir sempre no zero. Tens que te reinventar, precisas de encontrar o retorno daquilo que és naquilo que fazes. Comecei a fazer músicas com o ukulele, a regressar às raízes: para fazer alguma coisa, tenho de ser capaz de fazer com pouco.

Tens tido projectos a solo, mas nunca verdadeiramente a solo. Aqui também estás rodeado por músicos.

Eu tenho muitas ideias, mas não são todas boas. O input que outro gajo me vai dar vai ser sempre mais original, porque vai criar um mutante daquilo que eu projectei, que não é dominado por nenhum de nós. Tem um factor de abismo que é muito mais rico. Ter que lidar com outra pessoa dá mais trabalho, mas é muito mais desafiante, porque te coloca numa posição mais frágil.

O disco tem muitos instrumentos, mas apesar disso é pouco denso.

Tinha uma vontade de simplificar. Tentei que as ideias mais simples se afirmassem e sobrevivessem no tempo. Numa época em que há coisas incríveis a acontecer, e muitas delas revolucionárias, sobretudo na experimentação tecnológica, começou a atrair-me a ideia de fazer um disco de canções simples. Muitas vezes neste disco apequenámos as coisas. Queríamos que a força não tivesse a ver com o impacto sonoro, queríamos jogar nas fragilidades, na singeleza.

És um músico inquieto e insatisfeito. De onde vem esse desassossego?

Acho que há uma vontade de criar um espaço alternativo a toda a realidade que sabes que não consegues mudar e à qual tens que te adaptar. Tens que ter um mundo onde possas ser o mais livre possível. Na arte não podes fazer concessões, mas às vezes esse teu espaço criativo é aquilo que te vai dar dinheiro. O mais importante desta coisa criativa é a tua comunicação contigo próprio. É teres um espaço para brincar como quando és puto. Se essa inquietude se resumir à parte criativa, é muito benigna. Quando começas a questionar por que não estás a funcionar socialmente é que as coisas são mais duras. Não consigo imaginar a criação sem inquietude. Agora já começo a perspectivá-la com prazer, com liberdade, sem medo.

O que te motiva hoje para criar?

Há uma parte que tem a ver com uma necessidade quase fisiológica de sobrevivência do ser humano, de criar coisas. Quase como uma droga, algo que te ajude a suportar a existência. Depois há uma outra parte que é mais da vaidade e da aceitação. Se achares que as pessoas só vão gostar de ti porque fazes coisas fixes, é uma merda. Tens que lutar para que as pessoas gostem de ti, mesmo que o teu trabalho não seja especial. E para isso ajudam as fases em que não fazes nada de jeito e percebes que há pessoas que estão-se cagando para isso e que gostam de ti.

Este disco é de certa forma positivo, afirma uma vontade de viver.

Isso foi um reflexo do que eu estava a viver, mas também uma vontade que eu tinha de estar bem e de transmitir isso para os outros. Mas se estás numa fase lixada não podes forçar-te. Tens de tentar ter alguma honestidade. Alguma. Porque toda a honestidade não sei se algum dia um gajo vai conseguir, nem sei se interessa, não sei se alguém quer ouvir as tuas merdas. Ninguém tem paciência para ouvir um gajo ser completamente honesto. Havia pelo menos uma vontade de estar bem. É aquela cena de perceberes que tens mais vida para trás do que para a frente, portanto há sérios riscos de eu já estar mais definido no que já fiz do que no que vou fazer. Já fiz a minha penitência. Apesar de saber que sou egocêntrico, não duvido que preciso dos outros, e que vivo para os outros. Quero ajudar a fazer um mundo mais fixe.

As tuas músicas partem das tuas experiências mas também de observações. Como é que as fazes?

Não sou muito informado do ponto de vista político. Não consigo ler livros, disperso-me, não gosto de ler. Eu sou muito virado para o próprio prazer. Se uma coisa não me dá pica aprender, não me esforço nada. Tenho a minha análise da sociedade que não acho que seja inválida. Sou muito atento às pessoas. Gosto muito de ouvir pessoas que não têm nada a ver com o meio artístico e que dizem coisas completamente reveladoras. O conhecimento é uma coisa global, está em tudo.

Como é que um gajo que não gosta de ler consegue escrever como tu?

Isso é um mito. A sociedade adora cenas absolutas, detesta estar perdida. A maior preocupação deve ser comunicar. Falar é uma forma de escrita, é uma escrita no ar. Fazer música é uma escrita, pintar também. As palavras são coisas ao teu serviço. Não pode haver cerimónia, religiosidade. Tens que as tratar mal porque elas não têm vida, és tu que lhes dás vida.

  • Música

David Fonseca já soma 17 anos de carreira a solo, mas nunca lançou um best of. Como é que uma pessoa nada dada a retrospectivas decide, de repente, lançar uma compilação de lados B e raridades? A culpa foi da pandemia, que nos fechou em casa e nos forçou a olhar para dentro.

Durante a quarentena, David Fonseca mergulhou a fundo no seu arquivo, como nunca o tinha feito. “Na realidade, se não fosse o confinamento talvez este disco não tivesse acontecido, mas os discos são sempre fruto das circunstâncias e tempo onde vivem”, explica. “Ao fazê-lo, descobri estas canções que, apesar de terem sido totalmente finalizadas, estavam espalhadas por todo o lado de forma pouco acessível. De alguma forma, acabam por mostrar um lado mais invisível do meu trabalho como músico, uma espécie de lado B da minha carreira como compositor.”

Lost and Found – B Sides and Rarities reúne momentos mais atípicos, experiências e abordagens diferentes. Alguns mais experimentais, outros mais inesperados, entre o português e o inglês, num total de 16 canções que escaparam aos discos que lançou, mas que era importante assinalar de forma mais séria na sua discografia. Desenterrar estas raridades foi regressar ao passado. “Descobri que nem sempre tomo as melhores opções quando decido descartar-me de algumas canções! Acho que consigo perceber o meu grau de exigência a cada disco, é estranho para mim que algumas não fossem vistas como uma opção na altura e que acabassem por sair dos discos principais.”

Desde os Silence 4 que David Fonseca percebeu que as suas tempestades emocionais ressoam de forma forte nas outras pessoas. Ele escrevia para si próprio, mas acabaria por descobrir que não estava sozinho nas suas inquietações líricas. Tudo o que atravessamos, alguém, algures, já atravessou também. As nossas dores e alegrias são o que nos une, por isso, o melhor que podemos fazer é olhar uns pelos outros.

A música foi um elemento importante para lidar com o período de confinamento, entregando-se aos impulsos imaginativos. “Explorei de forma mais aprofundada alguns instrumentos e técnicas, estudei novas formas de gravação e fiz alguma música. A música sempre foi um porto seguro para mim e neste caso não foi diferente. Fazer e ouvir música levam-me para um universo distante e próximo ao mesmo tempo, um universo onde não existem tantas regras como aquelas que nos regem em tempo de pandemia.”

Apesar disso, escrever canções é “um misto de sentimentos contraditórios”. “Por um lado, há o prazer da descoberta de algo novo, a ideia de construir uma canção que ainda não existe. Por outro, a frustração que acompanha esse processo, cheio de falhanços e caminhos sem saída. Mas uma vez que se aprende a lidar com a parte mais difícil da criação, vale sempre a pena.”

O meio musical (e cultural, em geral) é um dos que mais tem sofrido com os efeitos da pandemia. “Preocupa-me a precariedade de toda a área cultural. A cultura é uma das bases essenciais da identidade de um povo e é urgente olhar para esta área como algo absolutamente fulcral para o nosso desenvolvimento. Acredito que temos muito para dar e muito que crescer, mas esta área tem de ser olhada com a importância e destaque que merece pelos governos que nos regem.”

Depois de ter deixado a digressão Radio Gemini a meio, com dezenas de espectáculos cancelados, ainda vamos ter de esperar algum tempo para ver David Fonseca ao vivo e sem ecrãs pelo meio. “Espero voltar aos palcos o mais rapidamente possível. Vamos ter de conviver com esta situação de pandemia durante algum tempo e teremos de nos adaptar a esta nova realidade”, diz. Mas será “em breve, muito em breve”.

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