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Adolfo Luxúria Canibal: "É uma história de amor, muito psicológica, é uma história de perda"

Escrito por
Ana Patrícia Silva
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O aquecimento global e a subida do nível das águas do mar originam o cenário distópico do novo álbum dos Mão Morta, mas no cerne deste conto sci-fi surrealista está uma história de amor, de desespero e de perda. No Fim era o Frio partiu de um conjunto de módulos musicais, foi transposto para um espectáculo de dança e depois gravado em estúdio. Este é o mais recente disco da banda. Falámos com Adolfo Luxúria Canibal.

O que é que veio primeiro? O texto, a música ou o espectáculo?

Primeiro foi a ideia musical do disco. Queríamos trabalhar a partir das bases da música electrónica, fazer uma espécie de composição modular e levar essa ideia para a música eléctrica. Quando ainda estávamos a pensar no disco, numa fase muito conceptual, surgiu o convite para fazermos um espectáculo de dança.

Como é que transpuseram isso para o palco?

Gravámos na sala de ensaios, passámos para a Inês Jacques para ela criar a coreografia e depois trabalhámos juntos a parte cénica e os figurinos. A coreografia foi trabalhada a partir de uma história muito concreta, o que para ela foi um desafio. Normalmente não é assim que acontece, os coreógrafos partem de ideias muito abstractas. Depois do espectáculo, tirámos partes que tínhamos acrescentado, alongámos o que tínhamos encurtado e fomos gravar no estúdio.

Foi o vosso primeiro espectáculo de dança, e com música e texto de raiz. Era um desejo antigo?

Há muitos anos, no início dos Mão Morta, vi um espectáculo de dança do Michael Clark com os The Fall [I Am Curious, Orange] e fiquei fascinado com a coreografia, a forma como as coisas se interligavam; aquilo era fortíssimo. Tive uma namorada bailarina que me levou a ver muitas coisas e quando vivia em Lisboa ia sistematicamente ver dança nos Encontros Acarte. Tinha uma ligação estética e emotiva à dança e uma grande vontade de trabalhar isso, mas os meus companheiros de Mão Morta não estavam particularmente vocacionados, pelo menos no início. Mas finalmente consegui impingir-lhes a minha vontade. (risos)

O texto tem sido descrito como uma distopia, mas também pode ser uma reacção bem real de um homem que perdeu a mulher amada e vê nisso o vazio e o fim do mundo. Foi intencional?

Foi inconsciente. É verdade que é um cenário distópico, mas não é o principal. A história é exactamente isso, é uma história de amor, muito psicológica, é uma história de perda e tudo o que está inerente a essa perda: as alucinações, o não saber o que é real. Perdendo a pessoa amada, de repente a pessoa perde-se a si própria. A perda é de tal maneira grande que o mundo lhe foge debaixo dos pés e ele próprio se desagrega. Eu não tinha isso consciente, mas acho que tem muito a ver com a história dos meus pais – a morte da minha mãe, o vazio que isso deixou no meu pai e que o levou à demência. Tudo isso está no disco. Só a posteriori é que percebi que estava a falar do meu pai e da minha mãe.

E há paralelos com o mundo actual, como a ascensão do fascismo. De alguém que pensa que vai ter a salvação mas acaba por encontrar a destruição.

Sim, são pequenos piscares de olho ao real, ao concreto do mundo de hoje. Não foi uma história pré-concebida, eu é que a puxei para estes pequenos encontros com a realidade. A história foi muito mais forte que eu. Não fui eu que a dominei, foi ela que me dominou a mim. À medida que a música ia surgindo, a história foi tomando forma. Não existia na minha cabeça, ela é que se autocriou.

Costumas ser poético em vez de interventivo, mesmo quando falas da realidade. O que te atrai nesse lado poético?

Eu não gosto do preto no branco. Acho que é enganador e de alguma forma é selvático. O facto de eu escrever e fazer música tem muito a ver com a minha necessidade de interpretar a realidade, de tentar perceber o confuso. A escrita poética vai mais longe do que a escrita interventiva ou crua. A escrita poética consegue aprofundar, consegue ir mais perto da verdade do que a escrita mais directa. Com esta minha busca que me leva a escrever, com esta minha ânsia de perceber onde é que estou, acabo por usar termos que parecem mais obscuros mas que ajudam a perceber melhor o que é que se passa.

Na tua escrita existe uma fina linha entre a ironia e o gozo. Não te levas demasiado a sério.

Eu gosto muito da ironia e gosto muito da dúvida que a ironia cria e que nos faz pensar. A grande vantagem da ironia é essa. Leva-nos a uma data de questões, a analisar a pessoa, o que ela diz e não diz. Faz-nos pensar muito e isso é uma coisa imprescindível, o pensamento. Acho que é das poucas coisas que a gente ainda consegue ter de nosso, se quisermos.

Costumas ter que te travar por achares que estás a ir demasiado longe?

Ofender ou ser politicamente pouco conveniente é uma noção estranha para mim. Estou tão longe desse pensar dominante que nem percebo que estou a ir contra ele ou que estou a infringir regras. Fico admirado quando há reacções violentas, porque o que me faz escrever não tem nada a ver com isso. São coisas tão pessoais, mesmo sendo universais, que não percebo que choquem.

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