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As mulheres, como as ruas, abrem caminho umas para as outras

Escrito por
Maria Monteiro
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O fascínio de Sara Barros Leitão (n. 1990) por vidas envoltas em pó não é novo. Entre frágeis recortes de jornais antigos, páginas amareladas de livros esquecidos pelo tempo em bibliotecas ou alfarrabistas, está como em casa – basta pensar na peça Teoria das Três Idades (2018), que criou a partir do arquivo do Teatro Experimental do Porto.

Quando foi convidada a fazer um espectáculo no âmbito do programa municipal Cultura em Expansão, a actriz e encenadora, que diz ter “uma obsessão em ir à raiz das coisas”, dirigiu-se de imediato ao Arquivo Municipal do Porto. Ainda não sabia exactamente o que procurava, mas tinha papel, caneta e vontade de se atirar à memória das ruas do Porto. Pegou n’As ruas do PôrtoRelatório da Comissão de Toponímia (1935), que regista a primeira reunião da comissão para mapear a cidade. Leu as 68 páginas de um só fôlego e encontrou nelas a inquietação para arrancar com Todos os Dias me Sujo de Coisas Eternas, que se estreia na sexta na Casa d'Artes do Bonfim. “Discutem-se ruas que estão por nomear e, ao longo de duas páginas, há várias propostas onde não consta uma única mulher.”

A falta de representação feminina na toponímia do Porto levou a encenadora a acumular mais documentos em busca de mulheres. “Se as ruas imortalizam pessoas importantes para a cidade, onde é que estão as mulheres em 1935?”, questiona. “Os homens eram filhos de quem?”. Consultou o Prontuário de Toponímia Portuense, dois volumes maciços “onde passam centenas de páginas sem o nome de uma mulher” e que contrastam largamente com a fina lombada da Toponímia Feminina Portuguesa. “Só 5% das ruas do Porto têm nomes de mulheres, sendo que grande parte destas são santas e nomes ou adjectivos que não são nomes próprios”, explica Sara Barros Leitão, notando que a acentuada diferença começa nas histórias incompletas registadas. “Temos uma série de revoltas onde as mulheres estiveram nas linhas da frente”, assinala a criadora, dando como exemplo o 31 de Janeiro ou a recepção popular a Humberto Delgado. “Elas estiveram lá, mas nos livros de História só saem à rua em contexto de grupo, como os tanques de lavar a roupa.”

Para contornar o caos informativo da pesquisa, Sara Barros Leitão desenhou uma “viagem emocional por estes materiais” em forma de monólogo. Foi, precisamente, entre os papéis que despertou para algumas reflexões presentes na peça. Enquanto folheava a Toponímia Feminina Portuense, apercebeu-se da existência de ruas com nomes de mulheres que abriam outras ruas com nomes de mulheres: como a Rua Maria Lamas, que dá para as ruas Sarah Afonso e Adelaide Estrada. “É como se, simbolicamente, as mulheres abrissem caminho umas para as outras, porque as ruas são caminhos”. Embora “não tivesse fundo verídico”, foi encontrando argumentos a favor da sua tese pela cidade fora. Prova disso foi o encontro com a estátua da violoncelista Guilhermina Suggia, em Ramalde, que destoa completamente de figuras como a Menina Nua, nos Aliados, ou Ana Plácido em Amor de Perdição, na Cordoaria. “Ela está vestida e representada pela sua arte. Está a fazer outra coisa que não a inspirar alguém.” E viu que, ao contrário das anteriores, Suggia foi imortalizada por outra mulher, a escultora Irene Vilar.

Após uma primeira fase imersa em papéis, Sara saiu à rua para ouvir histórias. Levou chá, biscoitos e tempo e sentou-se na Praça da Batalha. Durante três horas ouviu “quatro pessoas com histórias que eram todas a mesma: a grande história das suas vidas”. Foi aí que se deu conta de uma outra opressão existente hoje no Porto: a falta de momentos de escuta. “Não podemos criar uma espécie de Disneylândia onde os moradores são tratados como figurantes que só existem para que se veja que há cá pessoas reais.”

Depois desta “transformadora” intimidade criada na rua, traz para a peça uma proposta de alteração à forma como os nomes das ruas são atribuídos. Em vez da distinção de “grandes personalidades já mortas que, na realidade, são pessoas que nascem com privilégios”, Sara Barros Leitão defende que todos devem ter acesso à imortalização. Afinal, “a vida também é feita de pequenos feitos”.

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