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© José Caldeira O CAMPUS está sediado no edifício da antiga escola José Gomes Ferreira, perto da zona do Marquês

CAMPUS Paulo Cunha e Silva: reclamar tempo e lugar para a criação

O CAMPUS, no Porto, é um novo centro de residências e espaço de trabalho para as artes performativas.

Escrito por
Mariana Duarte
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Nos últimos anos, o circuito de artes performativas do Porto tem ficado cada vez mais vitaminado, com propostas artísticas e criadores de diferentes contextos, linguagens, campos operatórios e criativos. Contudo, há uma lacuna, mais ou menos crónica, que permanece apesar desta efervescência: a falta de espaços de ensaio, pesquisa, criação e experimentação com condições não só estruturais como materiais, que permitam aos artistas ter tempo, meios e um respaldo financeiro para poderem pensar e germinar os seus projectos.

Em Junho, o CAMPUS Paulo Cunha e Silva entrou em cena para tentar colmatar esta lacuna, pelo menos em parte. Este centro de residências e espaço de trabalho para as artes performativas, em homenagem ao antigo vereador da cultura da Câmara do Porto falecido em 2015, é uma iniciativa da autarquia com a direcção da equipa artística do Teatro Municipal do Porto (TMP). Situado no edifício da escola José Gomes Ferreira, desactivada em 2013, o CAMPUS conta com quatro estúdios, dois quartos, uma cozinha, uma lavandaria, balneários, uma sala de produção, uma biblioteca de artes performativas e sala de estar, um armazém técnico, um jardim e pátios traseiros. “Tanto eu como o Tiago [Guedes, director artístico do TMP e do departamento de artes performativas da empresa municipal Ágora] temos um background como artistas e passámos por muitos centros de residências. Tentámos chegar a um modelo que fosse abrangente e que chegasse ao maior número de pessoas possível”, introduz Cristina Planas Leitão, da equipa de Programação de Artes Performativas do TMP, do CAMPUS Paulo Cunha e Silva e do DDD Festival Dias da Dança. 

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© Jose CaldeiraA intérprete e coreógrafa Ana Renata Polónia foi uma das artistas do Porto que passou pelos estúdios deste novo espaço

50% do espaço do centro é dedicado às reservas directas dos estúdios de forma gratuita, sem qualquer tipo de filtragem ao nível artístico ou de currículo - a única regra é serem criadores locais profissionais. “Se as pessoas quiserem vir só fazer uma prática de yoga todas as manhãs, é ok. Tens direito a fazer isso num estúdio, faz parte da tua prática”, defende Cristina Planas Leitão. “Se vens ensaiar para projectos específicos que vão estrear em qualquer sítio, também tens direito a isso.” Os estúdios estão disponíveis para reserva, via site, durante 24 horas - “se um artista ou colectivo quiser, pode vir para cá às 4.00 da manhã” - e por períodos entre as quatro e as 240 horas, podendo ser renovada após 30 dias. A ideia é que exista uma “circularidade” entre o maior número possível de artistas, de “diferentes escalas e backgrounds”, desde recém-formados a nomes já estabelecidos (é possível conhecer quem anda por lá através da página de Instagram). Isto possibilita não só fazer um mapeamento da comunidade artística “de forma mais calma e próxima” (em parte contribuindo para o trabalho do TMP no que toca a potenciais co-produções), como promover um “ponto de encontro e partilha” para criadores.

Por outro lado, sujeitas a selecção, há as candidaturas aos open calls para as residências, todas elas remuneradas. Desdobram-se em três eixos: Residências Artísticas (entre duas a oito semanas, remuneradas no valor de 500€ por semana), Residências Técnicas (500€ por semana, entre uma a duas) e as bolsas de pesquisa Reclamar Tempo (3 mil euros por projecto). As primeiras duas são abertas a artistas a residir em território nacional, dentro das áreas da dança contemporânea, do teatro, do circo contemporâneo, das formas animadas e cruzamentos disciplinares. A última, cuja edição inaugural foi lançado no ano passado via TMP, servindo como uma espécie de prólogo do CAMPUS, é destinada a criadores das artes performativas que trabalhem ou vivam na Área Metropolitana do Porto, tendo como objectivo estimular os processos de investigação e de reflexão sobre discursos e práticas artísticas que muitas vezes são atropelados pela voragem das apresentações das peças. “Queres fazer arquivo, queres perceber qual é a tua metodologia de trabalho, estás numa fase muito embrionária de algum projecto? [Este programa] é o indicado”, exemplifica Cristina. As candidaturas para a temporada 2021-2022 das residências já foram encerradas; os próximos open calls acontecem para o ano. A partir destas residências, pretende-se ir abrindo o centro a “não profissionais e à vizinhança”, através de conversas, ensaios abertos, leituras ou até pequenos-almoços com os artistas. “Pedimos que cada residência integre uma actividade de mediação de públicos.”

Antes de ser implementado, este modelo-base do CAMPUS foi discutido com uma fatia da comunidade artística da cidade, reflectindo a ética-prática “mais horizontal, mais aberta e mais acessível” que se pretende instaurar no centro. “Entre Outubro e Novembro do ano passado convocámos 40 artistas e fizemos reuniões Zoom. Mostramos-lhes os nossos planos, os eixos de acção, e estivemos umas horas a ver o que achavam de vários pontos”, recorda a programadora. “Houve muitas ideias; a comunidade ajudou mesmo muito.” O objectivo é ir ajustando o modelo de funcionamento aqui e ali à medida que se for avançando, “sempre com o feedback dos artistas”. Em Setembro arranca outra vertente do projecto, em formato piloto até Dezembro: aulas diárias para profissionais das artes performativas, leccionadas por “professores-artistas”, “50% locais/ 50% não locais, 50% homens/ 50% mulheres”, remunerados por igual independentemente do currículo, refere Cristina. Práticas somáticas, artes marciais, yoga, danças urbanas ou teatro físico são algumas das disciplinas contempladas nestas aulas, que podem ser compradas avulso (3€) ou num pack de dez (25€). Marco da Silva Ferreira, Joana Von Mayer Trindade, Steven Michel e Isabelle Missai são alguns dos professores convidados, sendo que estas escolhas se cruzam com a programação do TMP. 

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© Jose CaldeiraSala de estar que acolhe uma biblioteca de artes performativas

Apesar de estar numa fase experimental, o projecto do CAMPUS visa passar uma mensagem muito clara à comunidade artística: “É ok trabalhar sem apresentar um produto final, é ok fazer menos, é ok ter tempo. Aqui podem e vão ser pagos por isso”, sublinha Cristina Planas Leitão. “Uma premissa muito importante” desta iniciativa é mostrar que “o trabalho artístico tem de ser remunerado” em todas as suas etapas, independentemente do ritmo de produção e produtividade, valorizando-se “as práticas, ideias e pesquisas” mesmo se estas não forem materializadas em espectáculos nem legitimadas na cadeia criador-programador-financiador-espectador. Por isso mesmo, lembra Cristina Planas Leitão, as residências artísticas do CAMPUS estão abertas a propostas que não tenham uma estreia agendada ou outro tipo de concretização concreta em vista, abrangendo também remontagens de peças ou ensaios para novas apresentações.

“Criou-se um ciclo vicioso em que o artista, para ganhar dinheiro, tem de ter um produto e tem de o mostrar, e isso tem muito a ver com a validação gerada pelas programações e respectivas apresentações. Acho que nós, como artistas, acabamos por entrar num sistema que nem sempre nos serve. Temos de batalhar - artistas, programadores e instituições - por outros modelos de apoio financeiro”, conclui a programadora, também coreógrafa, intérprete e professora. “Estamos sempre a dizer que produzimos tanto, tanto, tanto, mas acho que a ecologia também tem de se aplicar ao trabalho artístico, àquilo que se produz e como se produz.”

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