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MEXE: “Para falar sobre racismo temos de falar sobre branquitude”

Escrito por
Mariana Duarte
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Partindo das experiências dos performers e de obras de autores como Frantz Fanon, bell hooks e Sueli Carneiro, Isto é um Negro? é um espectáculo sobre ser negra e negro no Brasil. Conversámos com Ivy Souza, uma das actrizes que estará este sábado 21, no Teatro Carlos Alberto.

Esta peça foi criada na Universidade de São Paulo, certo? Como é que tudo começou?

A Tarina Quelho, que é a directora do espectáculo e dramaturga, junto com a Mirella Façanha, é professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, onde eu, Mirella e Lucas [Wickhaus] tirámos o curso, nos conhecemos e nos formámos. Num semestre, Tarina ia dirigir um processo de criação com quatro alunos e artistas negros: Mirella, Lucas e mais outros dois actores. Entendeu-se que era importante e necessário, naquele momento, estudar sobre negritude, sobre branquitude e sobre racismo no Brasil. Eu e o Raoni [Garcia] entrámos depois no processo.

Vocês inspiraram-se em várias autoras e autores da negritude, entre os quais Aimé Cesaire, Frantz Fanon, bell hooks, Sueli Carneiro, Grada Kilomba. Como fizeram esta selecção?

O que me interessa muito no espectáculo é que ele é realmente um estudo. Pensando principalmente na Universidade de São Paulo, no meio académico, muitos autores que guiam o percurso intelectual são brancos, então, para a gente era muito importante entender outras perspectivas. Para entender o racismo e a negritude, e a miscigenação no recorte do que aconteceu e acontece no Brasil, a gente precisou de ir para autores estrangeiros negros e autores brasileiros, que coincidem e discordam entre si. O nosso interesse era entender a multiplicidade de pensamento onde somos um indivíduo preto e onde nos encontramos na colectividade.

Como é que trabalharam as ideias destes autores através do movimento e do corpo?

A Tarina tem uma experiência muito grande em dança. O espectáculo conversa com várias linguagens: flui entre dança, performance, teatro, stand-up, uma palestra, um musical. A gente envolve várias linguagens para dar conta do que queremos falar. A partir do estudo, a gente levantou muitas perguntas e essas perguntas mobilizaram as formas de fazer.

A ideia é também questionar a branquitude e o que as pessoas brancas não estão a fazer – e precisam de fazer – na luta contra o racismo sistémico no Brasil?

A todo o momento. A gente entende o espectáculo como um grande diálogo. Não só repensamos como a branquitude instituiu, sistematizou e estruturou o olhar que nós, pretos, temos sobre nós mesmos, mas também como uma branquitude olha para as pessoas negras. É muito importante que para falar sobre racismo falemos sobre branquitude. A branquitude precisa de ser racializada; as pessoas brancas precisam de se entender nesse sistema da branquitude e como ele opera de várias formas e em locais diferentes. O racismo não é só uma questão das pessoas negras, mas das pessoas brancas também. A gente precisa de mobilizar estudo, debate e diálogo, e conflitos e crises, para podermos evoluir para alguma outra possibilidade de existência – juntos.

O texto foi inspirado nas vossas vidas enquanto pessoas negras no Brasil?

A dramaturgia é inspirada em vários autores e é preenchida pelas nossas experiências, mas também pelas de outras pessoas – e, por vezes, as experiências aparecem trocadas. Às vezes eu falo algo que não foi vivido por mim mas por uma pessoa próxima, justamente para dialogar com isso da experiência de ser negro no Brasil.

A peça desconstrói as narrativas branqueadas e romantizadas do colonialismo e da escravidão. O que significa para vocês apresentar este trabalho em Portugal, o país colonizador e invasor?

O espectáculo começou como um estudo e permanece como um estudo. A gente teve oportunidade de o apresentar em várias regiões do Brasil. O Brasil teve diferentes experiências de colonização e foi muito impactante para nós entender como o racismo opera, sistematicamente e institucionalmente, de múltiplas formas: às vezes cordial, outras vezes de forma muito explícita… Para a gente entender as várias facetas do racismo é muito importante entender como se pode lutar contra. Para a gente não é nada romântico a ideia de colonização que ainda permeia a identidade do Brasil. Ainda temos um dia em que se comemora o “descobrimento” do Brasil, que nada mais foi do que uma invasão. A miscigenação foi uma violência sem limites e que é muito cruel, tanto para a formação de identidade do país como para a formação das pessoas que são miscigenadas. Fazer o espectáculo em Portugal vai ser interessante para a gente entender como se elabora essa experiência de colónia. E nós, que somos do país colonizado, entendermos esta experiência aí.

O seu solo é autobiográfico?

Sim, só que são experiências vividas não só por mim mas também pelos outros actores e por pessoas próximas. É curioso porque muitas das histórias que eu narro já estavam no texto – porque era outra actriz que fazia este solo, inicialmente – e eu vivi-as depois. O espectáculo joga um pouco com isso: como o racismo é uma prática quotidiana.

Por que é que decidiu transformar algo tão doloroso num formato de stand-up comedy?

É muito importante ressaltar que a experiência do racismo é sempre violenta. Ela pode ser institucional, uma atitude aparentemente banal ou uma piada entre amigos, mas é sempre violenta. O espectáculo dialoga com isso formalmente, porque o público está incluído a todo o momento. É convocado a pensar. E, por vezes, o público é apanhado de surpresa, assim como nós, pessoas pretas, somos apanhadas de surpresa pelo racismo e nem sempre a gente sabe como reagir. Espera-se que eu, uma mulher negra, que fui, sou e serei vítima do racismo, fale sobre essa experiência de forma vulnerável, frágil, ressentida, triste. O espectáculo, e a minha cena, vai na contramão: eu não elaboro a minha experiência como a branquitude quer. Na forma como eu faço, eu não sou vítima em cena: sou sujeito, sujeito apropriado de si, e não estou vulnerável. E isso é muito impactante para quem vê eu dizendo essas piadas racistas, porque se espera que eu esteja frágil.

O racismo, o machismo, a homofobia e o genocídio da população negra sempre existiu no Brasil, mas agora é legitimado e apoiado pelo governo. Ser negro hoje no Brasil é diferente do período pré-Bolsonaro?

A abolição da escravatura a 13 de Maio de 1888 no Brasil aconteceu no papel, mas estruturalmente a escravidão se manteve e se modernizou. O genocídio da população preta no Brasil, hoje, não é um acaso. A população encarcerada, hoje, não é um acaso. A escravidão se modernizou. Obviamente que com a eleição desse presidente existem perdas significativas que vão demorar a ser reconquistadas, e passou apenas um semestre. As perspectivas não são positivas, mas há centenas de anos que a população preta do Brasil é massacrada. Nunca foi bom. Esse momento não é novo. Agora talvez algumas pessoas, principalmente brancas, entendam a situação crítica em que a gente está e para onde vamos.

Preço: 5€.

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