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Resistir ao tempo. A arte da relojoaria procura sangue novo

São relojoeiros, trabalham com o tempo e tentam resistir à sua passagem. Como preservar uma profissão histórica? Na Marcolino o foco é a formação dos mais jovens.

Ana Catarina Peixoto
Escrito por
Ana Catarina Peixoto
Jornalista, Porto
Relojoeiros Marcolino
DR | A Marcolino, na Rua de Santa Catarina, conta com uma equipa de quatro relojoeiros
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Cada vez que António Alves arranja um relógio é como se conversasse com ele. Desmonta-o, analisa-o, entende os seus sinais e repara, de forma precisa, as centenas de peças minúsculas que o constituem. “Quando estou a colocar um determinado componente, se ele não for ao sítio na primeira ou na segunda vez é porque me esqueci de alguma coisa. E em 90% das vezes está certo. Parece uma maluquice, mas o relógio dá-me sinais, iniciamos uma conversa entre os dois”, conta. António é relojoeiro há mais de 30 anos, mas garante que cada máquina que lhe chega às mãos é como se fosse a primeira – sempre memorável. Há dois anos chegou à histórica relojoaria Marcolino, na rua de Santa Catarina, com quem tem travado uma luta para preservar esta profissão.

“É preciso gostar disto, porque é uma profissão que exige bastante disciplina”, sublinha António, vestido de bata branca, ar sereno e encostado à sua mesa de trabalho, onde se encontram pequenas peças espalhadas, ferramentas e máquinas para várias funções. Por mês, a equipa de relojoeiros da Marcolino chega a receber cerca de 500 relógios, muitos deles para pequenos trabalhos, como a substituição de pilhas. Entre 50 e 60 vão para arranjo com o serviço completo. 

O percurso de António no mundo da relojoaria começou ainda jovem, de uma forma peculiar. Nascido em França, tinha 14 anos quando, no fim de uma missa, o patrão do seu pai colocou-lhe uma questão: “O que queres fazer no futuro?”. António não tinha resposta e recebeu duas hipóteses de volta: “Ou vais para relojoaria ou para dentista”. A escolha foi relativamente fácil. “Na altura, os dentes não me puxaram muito. Coincidiu que, em França, podemos tirar uma semana para fazer estágios onde quisermos. À segunda-feira podemos ser padeiros, à terça mecânicos, etc. Decidi ir para a relojoaria da minha aldeia, estive lá uma semana e saí de lá a saber que queria ser relojoeiro”, conta. 

Relojoeiros Marcolino
DRNa Marcolino há quatro relojoeiros fixos

O que o atraiu na relojoaria? “Foi simplesmente o [acto] de colocar uma corda dentro de um tambor. Estava tão bem, que, a partir daí, todo o meu plano curricular foi pensado para entrar em relojoaria”. Depois de se apaixonar por esta arte, António foi para uma das três escolas de relojoaria em França, aprendeu a criar as suas próprias ferramentas, a fazer peças, a trabalhar com a parte eléctrica e física e a calcular, porque “a relojoaria é matemática”. “Temos de pensar em dilatação de materiais, em elasticidade e comportamento, e temos de saber os vários metais com que trabalhamos. É mesmo muito completo”, explica.

Mais tarde, foi para a Suíça e voltou para Portugal recentemente. No currículo, além das várias certificações que são necessárias, tem relógios feitos para nomes como Sylvester Stallone, Celine Dion, Roger Federer e muitos outros, mas, garante, cada relógio que constrói ou que lhe chega às mãos para arranjar tem um significado único. “Lembro-me de todos. Quando um relógio volta para as minhas mãos consigo perceber se fui eu que o consertei, até pelo polimento”, acrescenta, sublinhando que esta é uma profissão que “exige uma grande disciplina” e foco, uma vez que se trabalha com 400/500 componentes, alguns deles com um tamanho mínimo.

Às mãos destes profissionais chegam relógios com muitos anos – cheios de histórias e, em alguns casos, que passam entre gerações. A responsabilidade torna-se maior e qualquer detalhe é cirúrgico. “A simples pressão que tenho nos meus dedos para desapertar um determinado parafuso…posso parti-lo a qualquer momento. Qualquer movimento, qualquer gesto que faça sobre o relógio tem de ser controlado e pensado. A relojoaria é disciplina. Tenho a alegria de todos os dias, desde 1992, poder fazer isto sem nenhum problema. Eu não venho trabalhar, venho fazer o que gosto”, assegura, acrescentando que cada relógio leva cerca de seis horas a ser desmontado, arranjado e montado novamente por si.

António Alves é relojoeiro há mais de 30 anos
DRAntónio Alves é relojoeiro há mais de 30 anos

Apesar de ter um departamento técnico dedicado à Rolex, a sua grande marca parceira, a Marcolino dá ainda assistência técnica a relógios de várias marcas, basta o cliente levá-los para arranjo. Caso os relojoeiros tenham as peças e as certificações necessárias de determinada marca, o serviço é garantido. 

A aposta na formação dos mais jovens

Além de colocar em prática a arte da relojoaria, António Alves foi também formador no Centro de Formação Profissional Indústria Ourivesaria Relojoaria (CINDOR), em Gondomar, uma das poucas escolas em Portugal onde é possível ter um contacto base com este trabalho, a nível do Ensino Secundário. A aposta na formação, diz, é essencial para garantir a continuidade da profissão que “está muito esquecida” e que conta maioritariamente com pessoas mais velhas.

Parte desta luta está também a ser feita pela Marcolino, fundada em 1926, e que conta actualmente com quatro relojoeiros fixos e um aprendiz, na sua loja em Santa Catarina. A loja está de portas abertas para receber mais pessoas, sobretudo jovens, interessadas em conhecer melhor esta área e ter formação na mesma. “Hoje em dia há uma dificuldade em contratar pessoas novas. Os jovens não estão muito virados para a arte da relojoaria e é também um trabalho nosso tentar puxá-los para cá e dar-lhes formação. A partir daí, se a pessoa tiver interesse, nós apostamos nela”, explica Miguel Neves, chief operating officer da Marcolino. A profissão de relojoeiro, diz, tem um alto nível de especialização e é cada vez mais difícil encontrar mão-de-obra qualificada nesta área. 

Relojoeiros Marcolino
DRMiguel Neves é chief operating officer da Marcolino

Ao mesmo tempo que se verifica esta dificuldade, a área da assistência técnica torna-se cada vez mais importante. "Quando se faz a venda, garantir uma assistência fiável e segura é muito diferenciador, porque é dar confiança ao cliente para voltar mais vezes e para confiar na casa. Não há muitas casas no país que dediquem esta atenção a ter uma parte técnica tão boa como a nossa. É difícil manter esta tradição e paixão pelo cliente”, refere o responsável. 

A formação feita com os técnicos da Marcolino será mais prática, focada em mostrar o trabalho diário de um relojoeiro, não substituindo a formação escolar, mas abrindo portas a um possível interesse e gosto pela área. O contacto para quem esteja interessado nesta formação é feito pessoalmente ou através dos contactos da loja.

Relojoeiros Marcolino
DRAntónio Alves é relojoeiro há mais de 30 anos

No futuro, a Marcolino tem também em mente a realização de open days para dar a conhecer o trabalho dos relojoeiros à comunidade e inspirar os jovens a seguirem esta profissão. Serão também feitas “ligações com escolas para dar a conhecer a relojoaria” e haverá também um kit com ferramentas para fazer relógios, que dará oportunidade aos clientes que nunca tiveram contacto com a mecânica da relojoaria de terem uma primeira abordagem. “Para criar o primeiro contacto, aquele gatilho. A partir daí, pode haver algum jovem que queira continuar”. 

Porque, numa profissão tão esquecida e ao mesmo tempo em constante evolução, é importante ter alguém, tal como aconteceu com António, que lembre que a arte da relojoaria ainda existe, basta procurá-la. 

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