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Silvia Calderoni: “O meu corpo fala melhor do que as minhas palavras”

Escrito por
Mariana Duarte
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Intensa, fuzilante, andrógina, Silvia Calderoni é a protagonista de MDLSX, solo encenado por Daniela Nicolò e Enrico Casagrande da companhia italiana Motus. Um hino “à liberdade e ao ser o que se quer ser” para ver no Teatro Carlos Alberto, sexta 14 e sábado 15. Conversámos com a actriz e performer.

MDLSX é o primeiro capítulo de um projecto de investigação da Motus em que a companhia aborda o tema “fronteiras/conflitos”. Em que medida é que vocês quiseram não só desmantelar barreiras no que toca ao género e à sexualidade, mas também no âmbito artístico?

Desmantelar barreiras está no âmago do trabalho desenvolvido pela Motus, que sempre foi uma companhia nómada e independente. Temos apresentado MDLSX e todos os outros espectáculos em espaços independentes, okupas e locais que são muito diferentes dos teatros tradicionais. A forma como as peças são criadas também sai fora das hierarquias: a Daniela [Nicolò] e o Enrico [Casagrande, ambos directores artísticos da companhia] concebem a dramaturgia e a cena juntamente com os performers, normalmente com base nas experiências pessoais dos intérpretes. Além disso, tudo é composto com recurso a diferentes média, misturando linguagens da performance e do teatro com vídeo, filme e música.

Vocês descrevem este trabalho como um “monstro-performance”. Pode explicar?

“Monstro” é uma palavra utilizada num momento muito forte do espectáculo. Normalmente é usada com uma conotação negativa, mas felizmente nós temos o poder de mudar o significado das palavras ao usá-las de uma outra forma. Este espectáculo é um hino à alegria, à liberdade, ao ser o que se quer ser sem limites, categorias, preconceitos… É também uma mistura de diferentes linguagens: para a Motus, o recurso a diferentes dispositivos técnicos nunca é decorativo, mas sim uma parte essencial da criação. Simultaneamente, o meu corpo não é usado como um instrumento mas como um corpo pensante, com a sua própria inteligência e emotividade.

Aqui toca-se em questões como a intersexualidade, a androginia e a fluidez de género, evocando pedaços de textos de autores como Paul B.Preciado, Judith Butler e Jeffrey Eugenides. Como é que tudo isto se entrelaça com a sua biografia?

Nos últimos anos, os directores da Motus pediram-me várias vezes para interpretar personagens com uma sexualidade indefinida, como Ariel n’A Tempestade, de Shakespeare, ou Antígona. Depois encontrámos a história fascinante da Calliope, protagonista de Middlesex [romance de Jeffrey Eugenides premiado com um Pulitzer]. Desta vez foi diferente – não houve armadura nem escudo de protecção, era eu! A Daniela, enquanto dramaturga, encontrou uma série de outras referências literárias que encaixavam na minha história e na minha aparência. Cruzámos estas referências com textos muito importantes na área dos estudos de género e com a minha história, com a ajuda de alguns vídeos caseiros da minha infância e adolescência. E assim nasceu MDLSX. Gostamos de descrever este trabalho como pós-biográfico. A fronteira entre a minha biografia e a de Calliope é fina, vaga, confusa. Trabalhámos a escrita nesse sentido. Os espectadores saem do espectáculo a pensar sobre se o que viram é realidade ou ficção.

© Renato Mangolin

Como referiu, durante a performance vemos vídeos de quando era criança e adolescente. Parece-me que já nessa altura tinha uma profunda consciência do seu corpo andrógino e de como expressá-lo através da performatividade. As artes performativas foram um lugar onde conseguiu explorar e compreender melhor o seu corpo e a(s) sua(s) identidade(s)?

Os vídeos projectados são do arquivo privado da minha família. Tê-los todas as noites em palco, comigo, é um exercício emocional muito forte, mas sem eles provavelmente este lado biográfico não seria gerado. A história que eu interpreto todas as noites não é a minha ao nível dos acontecimentos, digamos, mas é a minha ao nível dos sentimentos. Isto significa que eu estou a explorar e a expor quase tudo de mim própria. O palco é um lugar onde sempre estive exposta. Nudez, lágrimas, pensamentos, imagens…Tudo é material para criar.

E a música, por que é que tem um peso tão grande no espectáculo e de que forma reflecte a sua história?

A música tem um papel fundamental em MDLSX. A playlist é uma estrutura dramatúrgica onde áudios e vídeos são inseridos. A selecção de músicas está ligada a momentos-chave da minha adolescência e cada elemento contribui para fazer avançar o espectáculo. A música que eu lanço é muito evocativa e significativa para mim, já que é a banda sonora da minha adolescência e, por isso, parte de quem sou. É muito difícil explicar o que acontece energeticamente dentro de mim, mas o meu corpo fala melhor do que as minhas palavras.

A estreia de MDLSX foi em 2015. Como tem sido o ciclo de vida desta criação, tendo em conta que as questões de género têm ganho cada vez mais espaço no debate público? A performance tem sido contaminada por estas mudanças sociais?

A explosão de temáticas LGBTQI+ em cinemas, teatros e na televisão certamente que ajuda a enriquecer o imaginário colectivo, mas suaviza a radicalidade do imaginário político. Acredito que seja necessário manter um equilíbrio entre ambos. É muito perigoso esvaziar este tipo de discussões, tornando-as atractivas e polidas. Contudo, felizmente, há batalhas genuínas em todos os cantos do mundo. O que nós queremos deixar aos espectadores de MDLSX é um sentimento de positividade e liberdade. O ideal era que cada pessoa saísse do espectáculo um pouco mais aberta e disposta a receber o mundo em toda a sua incrível pluralidade.

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