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Música, Rock, Samuel Úria
Fotografia de Joana LindaSamuel Úria

Samuel Úria: “Este pós-apocalipse está a ser um bocado estranho”

Samuel Úria prepara-se para apresentar o novo disco ‘Canções do Pós-Guerra’ esta quarta-feira, 7 de Outubro, na Casa da Música. Falámos com ele.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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No seu novo álbum, Samuel Úria canta Canções do Pós-Guerra. Que guerra é essa? “Nenhuma em específico”, segundo ele. Há muitos tipos de guerra e cabem todos aqui. Depois da edição do disco e antes do concerto de apresentação no Porto, na quarta-feira 7, falámos sobre a música e o acto de a tocar durante a pandemia, mas também sobre a passagem do tempo e o fim do mundo.

Vamos começar pelo princípio. Qual é a guerra a que aludes no título deste disco?
Nenhuma em específico. A palavra “guerra” tem uma certa ambiguidade, cobre um grande espectro lexical. Pode ser o conflito armado literal, mas também uma guerra dos sexos, uma guerra geracional, um conflito interno. E o mesmo se aplica ao pós-guerra, que pode ser um momento de esperança, de desespero, de luto ou apenas de rescaldo.

E estas Canções do Pós-Guerra reflectem essa ambiguidade.
Sabes que escolhi o título antes de ter a maioria das canções feitas. Achei que não só a guerra, mas a própria noção de pós-guerra me poderia fazer escrever canções diversas e metê-las todas depois debaixo do mesmo guarda-chuva, da mesma sombrinha.

Há momentos de inquietação e fúria, mas a maior parte das canções é pesarosa, quase fúnebre. Muitas parecem ser sobre olhar para trás e não gostar do que se vê.
Há um desencantamento que quis trazer para este disco, que muitas vezes está presente nas minhas canções, embora normalmente esteja mais disfarçado. Neste quis que não estivesse só nas letras, que fosse reflectido nos arranjos. Tem a ver com esse olhar de que falas, que não é pessimista, que é realista sobre o passado, mas que se torna de alguma forma pessimista quando projectado para o que vem a seguir. Os dados que recolho do passado ou do presente não me dão a ideia de um futuro desafogado.

Em que sentido?
Estou ciente de que há clivagens na sociedade, há facciosismos, há extremismos, há coisas que estão a crescer no meu país que eu não esperava ver no meu tempo de vida. E o contexto de crise, de pandemia, com o qual não contava quando escrevi este disco no ano passado, agudizou aquilo que já estava a observar. Em vez de percebermos que temos de estar todos juntos para lutar contra isto, a pandemia agudizou as tais clivagens sociais.

Esta necessidade de olhar para trás e questionar não só o que foi feito, mas o que ainda se vai fazer, é uma consequência de teres chegado aos 40 anos, à meia idade?
Quando fiz 40 anos não me senti muito mais velho do que era quando tinha 38 ou 39, mas se calhar o arredondar do número dos 40 levou-me a fazer o rescaldo de uma década e a preparação para uma década nova. Porque há ali uma efeméride que é mais clara.

E não foste só tu que mudaste de década, foi o mundo. Entrámos nos anos 20.
Acho que, talvez por isso, existe uma reflexão que primeiro é pessoal e depois deixa de o ser. Começas a fazer uma revisão das décadas e dos grandes acontecimentos e a pensar no que não se fez – sei lá – desde o 11 de Setembro de 2001. Parece que o mundo acabou nesse dia, mas pelos vistos ainda não se reformulou. E este pós-apocalipse está a ser um bocado estranho.

Agora parece que está a acabar outra vez.
Exactamente. É estranho pensar na passagem do tempo e perceber aquilo que não foi feito, aquilo que está prestes a acontecer e é inevitável... Também é engraçado ver o quanto o mundo mudou e como até as mudanças para melhor trazem sempre um caudal venenoso. Há muita coisa que está a irrigar os terrenos à volta e está a dar frutos perigosos. E acho que a mudança de década, não só minha como do próprio mundo, convida a esse tipo de reflexões. Há um peso demasiado grande nos números redondos.

Escreveste o disco no ano passado. Quando tinhas pensado lançá-lo, originalmente?
Em 2019. A minha ideia era que este discocontemplasse também as canções do Marcha Atroz, o meu EP de 2018, que fosse maior. As primeiras canções que escrevi ainda estavam bastante ligadas a essas, em termos conceptuais. Só que depois por questões de calendário e porque, felizmente, ainda consegui tocar bastante em 2019, o disco foi sendo adiado. Comecei a gravá-lo no final do Verão, tive mais uma sessão em Dezembro, outra ainda no início deste ano, e a edição estava projectada para Março ou Abril de 2020.

Não achas estranho estares a lançar este disco só agora, num mundo tão diferente?
É estranho, mas nem tanto por estar desconexo da realidade. É o contrário. De repente tornou-se mais actual do que aquilo com que tinha contado. E isso também me traz quase um amargo de boca, por pensar que não será um disco de escape para as pessoas que estão a precisar de ouvir música como escape. Possivelmente, se tivesse de projectar um disco para 2020, depois de saber o que se iria passar, teria projectado um bem diferente.

Já deste um par de concertos neste mundo novo. Como têm sido essas experiências? Concertos com distância, com máscaras, sem cerveja na mão.
Isso afecta-te ao início, depois a coisa acaba por se normalizar. E a fome de palco ajuda a que seja a última coisa em que pensas. Queres é tocar, dar um espectáculo para os que estão. Não vais pensar nos lugares vazios, nem nas máscaras. Vais é pensar que não sabes quando é que podes voltar a fazer isto, e vais aproveitar ao máximo.

Estás a dizer que não sabes quando é que vais poder voltar a fazer isto, e é verdade. Como é que é essa insegurança, essa incerteza, te afecta a ti que vives disto?
Vou ser absolutamente sincero, e se calhar vou parecer a avestruz a esconder a cabeça debaixo da areia, mas neste momento essa incerteza e a ideia de que pode tudo acabar está sobretudo a ser canalizada para dar tudo nos próximos concertos. Estou a fazer muito poucos planos de contingência para a eventualidade de isto voltar tudo a cair outra vez. Tenho que dar o melhor no presente e isso obriga-me a que não esteja já tremendamente preocupado e cabisbaixo por causa da incerteza do futuro.

És um homem religioso. A tua fé ajuda-te a lidar melhor com essa incerteza?
Talvez. Embora eu seja de uma religião [baptista] que, em muitas coisas, é absurdamente racional e que não nos prepara para lidar com facilidades, pelo contrário. Crescemos com a ideia de que não podemos esperar que as coisas corram bem. Tens é de saber lidar com elas. Não é tanto o optimismo que é inculcado pela nossa religião, mas a resiliência.

Casa da Música (Porto). Qua, 7, 21.30. 18€.

Samuel Úria – Canções do Pós-Guerra

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  • 4/5 estrelas
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A procura da canção perfeita é um exercício de depuração. De a descarnar à essência, para sobreviver à erosão do tempo. Na música de Samuel Úria são as letras e as melodias que mandam, mesmo quando tocadas com tensão e intensidade, na tesão da electricidade. A arte da contenção faz recuar os arranjos para provar o sabor das palavras. Mas a simplicidade não o diminui. Quando despe uma canção, a riqueza da escrita sobressai, encadeada em leituras múltiplas. Num moinho de alegorias e parábolas, deixa-se emaranhar em labirintos líricos para esconder a nudez da sua vulnerabilidade. O esforço de desembrulhar as suas letras vale sempre a pena. Entre a introspecção e a intervenção, num olhar desconfiado e desesperado sobre o que nos rodeia, manda sermões ao mundo, mas também canta para a luz que um dia surgirá ao fundo do túnel. Acredita na potência emotiva e no poder subversivo do rock'n'roll. Usa a guitarra eléctrica como instrumento de combate, para apontar o dedo e chamar à acção – troca-a pela guitarra acústica quando navega e naufraga no seu íntimo interior. Seguro e sereno, sobrevivendo nos escombros, desenconchando o coração. ■ Ana Patrícia Silva

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