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Numa sala escura, com um foco de luz apontado, surge uma banana solitária colada à parede com fita-cola. Sim, essa mesmo que está a pensar. Comedian, de Maurizio Cattelan, tornou-se viral em 2019, gerou controvérsia, dividiu opiniões e foi vendida por seis milhões de euros a um empresário de criptomoedas. É uma das 26 obras que integram a exposição "Sussurro", uma retrospectiva do trabalho do irreverente artista italiano que pode ser vista na Casa de Serralves, entre 4 de Julho e 11 de Janeiro. Mas nesta exposição vive muito mais do que isso: há um desafio constante à nossa percepção, num misto de familiaridade e desconforto.
“Não há nenhuma banana aqui. Porque é que ninguém fala na fita-cola?”, ironiza Philippe Vergne, director do Museu de Serralves e curador de “Sussurro”, quando questionado sobre a presença desta obra. “Não é uma banana, é um comediante. O que é que isso diz sobre a nossa cultura? É um ícone que levou cinco minutos para aparecer, mas seis anos depois ainda falamos sobre ele. A questão é: daqui a 200 anos ainda vamos falar sobre um ícone que apareceu em cinco minutos? Não sei, mas o trabalho está feito. O Comedian não tem valor, é storytelling, é um ícone que tanto suscita veneração como aversão”, sublinha ainda, avançando para uma visita às restantes obras.

A exposição "Sussurro" foi concebida especificamente para integrar os dois andares da Casa de Serralves e o Parque, e reúne algumas das obras mais icónicas de Maurizio Cattelan, com uma reflexão sobre a história do nosso tempo, conseguida através de uma mistura entre seriedade, sátira, humor e a irreverência que caracteriza o artista. Philippe Vergne fala numa "exposição linda e perturbadora ao mesmo tempo". "É sobre a falácia do poder, do sistema de crenças, é sobre o prazer e a dor. É um privilégio enorme ter aqui um artista por quem tenho um enorme respeito, um artista que deixou uma marca muito profunda nos últimos 30 anos”, acrescenta o director do museu.
No mundo construído por Maurizio para a Casa de Serralves, os visitantes encontram formas e imagens familiares, mas esse caminho amigável e confortável não é inocente, nem para sempre. As obras confrontam os visitantes com sentimentos mistos, duras realidades e, acima de tudo, fazem pensar. Nas peças apresentadas pela primeira vez em Portugal está a controversa e famosa La Nona Ora (1999), em que o Papa é atingido por um meteorito; Ghosts (1997), onde pombos pousam silenciosamente por cima como testemunhas caladas; mas também uma Capela Sistina em miniatura (Untitled, 2018) construída no espaço da sala de jantar e que traz a grandiosidade renascentista à escala humana e convida a uma reflexão sobre a religião – “Parecemos gigantes, quase que conseguimos tocar em Deus”.

“Nesta exibição nada é inocente”
Ao longo da visita ouve-se um menino mecânico, sentado por cima do átrio, a tocar tambor e vai-se percebendo que as obras dialogam de uma forma única com o espaço. Numa outra zona da Casa de Serralves, o tema da religião volta a ser abordado, com um menino com a cara do ditador nazi Adolf Hitler ajoelhado em oração numa capela (Him, 2001) – um alerta para uma reflexão sobre o que fazer face aos tempos negros que vivemos. À entrada da capela surge também Jorge, um sem-abrigo.
Já bem visível no Parque de Serralves está L.O.V.E, uma imponente escultura de um dedo do meio apontado à Bolsa de Valores de Milão, que agora está também instalada em Serralves; mas também Daddy Daddy (2008), uma figura de Pinóquio que parece ter-se afogado numa fonte. Ao longo de toda a exposição, é possível encontrar a representação de vários animais, como Novecento (1997), com um cavalo pendurado no átrio da entrada da Casa de Serralves, ou Not Afraid of Love (2000), um elefante no meio da sala coberto com um manto branco.

“Muitas pessoas vêm cá porque sabem que Maurizio Cattelan é um artista muito importante, que aconteceu de fazer um trabalho em 2019 e esse trabalho chama-se Comedian. Penso que também virão porque também confiam em Serralves como uma instituição que lhes dá algo para olhar e pensar”, sublinha Philippe Vergne, acrescentando que esta "é uma forma de retrospectiva que Maurizio Cattelan raramente fez".
"Para o público português, é uma oportunidade única de ver o trabalho dele e a selecção de trabalhos foi feita tendo em conta a sua relação com a História – histórias de ícones, de caracteres, histórias traumáticas, histórias inexplicáveis, mas também a história da cultura visual, do entretenimento e de como o entretenimento e a arte contribuem para uma literatura visual que não é inocente. Nesta exibição nada é inocente, nem mesmo os visitantes”.

Philippe Vergne reforça ainda que fazer a curadoria desta exposição “era um sonho” com vários anos. “Ele trouxe diferentes aspectos da arte em que perdemos um pouco o equilíbrio. Rimos e choramos e adoro isso no trabalho dele”.
Rua de Serralves, 999 (Porto). 4 Jul-11 Jan. Seg-Sex 10.00-19.00, Sáb-Dom 10.00-20.00. 24€
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