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Na 'Odisseia' que fecha o FITEI, as mulheres esquecidas de Homero somos nós

Escrito por
Maria Monteiro
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Aura Cunha não é actriz, mas é a primeira pessoa que o público vai ver em palco quando entrar no Teatro Municipal Rivoli para assistir à estreia nacional de Odisseia, criação da companhia brasileira Cia. Hiato, que acontece no sábado 25 no âmbito da 42ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica.

“Hoje estou aqui em cena para contar para vocês a história de um homem complicado: meu pai”, introduz a produtora. Mas a história de Aura – abandonada aos oito anos pelo pai, que deixou a família para ir viver na Amazónia –, é também a história de Telémaco, personagem fictícia da emblemática Odisseia, de Homero, que passa boa parte da sua vida à procura do pai que largou tudo para desbravar o mundo desconhecido. “Ela está contando essa história da vida dela e, ao mesmo tempo, os primeiros cantos da obra”, diz Leonardo Moreira sobre o momento em que “a narrativa biográfica está em primeiro plano e a narrativa mítica em segundo plano”.

A contaminação entre ficção e realidade é constante no repertório da Cia. Hiato, que conta com dez anos de actividade ancorada em questionamentos pessoais. “Chegou uma altura em que parecia narcisista trabalhar a própria biografia, mas o momento político que o Brasil vive fez-nos voltar ao que nos une”, afirma o encenador. Atirou-se, então, à Odisseia, “trajectória de um homem que vai embora e que é violento e colonizador”, para falar do racismo, sexismo, misoginia e violência que habitam a sociedade brasileira.

“Procurámos entender as histórias místicas que nos fundaram e nos fizeram abraçar a nossa violência”, problematiza Leonardo Moreira. O também director da companhia sublinha o enfoque nos contrastes de “um país de aparência tão festiva”. Nesse sentido, a peça apropria-se da xénia – conceito da Grécia Antiga que atravessa toda a obra e define a hospitalidade com que Ulisses é tratado cada vez que chega a um lugar novo – para expor a “dinâmica oposta que caracteriza o Brasil actual”.

A xénia está presente na própria estrutura do espectáculo, que dura quase cinco horas (com dois intervalos). “A ideia não era fazer só uma peça, mas uma celebração em que o público tomasse o palco no final”, revela Leonardo Moreira. O criador reconhece que fazer uma peça tão longa na era do imediatismo foi “uma decisão difícil, mas necessária à imersão na jornada que é a obra”. Esta escolha permitiu, ainda, esbater a “quarta parede” para aproximar duas partes que partilham uma realidade. “A gente não queria criar uma hierarquia entre público e actores e, para isso, precisaria de passar tempo juntos.”

A peça quer criar uma intimidade diferente com o público
© José Maria Matheus

 A urgência em falar do contexto actual em palco “ganha forma através do destaque dado às figuras femininas da epopeia. “Todos se focam no mito do herói, mas ninguém fala das mulheres que ficam para trás, como Penélope, Circe ou Calipso.” As histórias das “mulheres negligenciadas nas mitologias” misturam-se com os discursos das seis actrizes e criadoras em palco. “Só tem um homem. De resto, são todas mulheres, negras ou gays – alguns dos grupos mais fragilizados por esse governo [de Jair Bolsonaro] e pela situação política”, observa o encenador.

Este é um espectáculo de particular exigência para os intérpretes, já que, por um lado, exige uma vulnerabilidade emocional para dar voz às suas histórias pessoais e, por outro, requer outra preparação para a criação de uma intimidade diferente com o público. “Não é uma personagem e um texto que estão a decorar, é uma experiência que estão a criar.” Esta peça, “um acto mais performativo do que actuado”, nasce da necessidade de um encontro, com tempo, entre um povo que se vê cada vez mais silenciado. “Isto não é uma teoria ou abstracção, a gente vive isso”, assinala Leonardo Moreira.

Depois da estreia na Grécia, berço da icónica epopeia, e de ter passado por países como Holanda, Chile e Brasil, Odisseia chega ao Porto vestida da mensagem que lhe deu origem: a necessidade de romper fronteiras. E, numa altura em que o ar do outro lado do Atlântico fica mais pesado, esta é, na verdade, uma chance para respirar e confraternizar – com direito a música, dança e comida.

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