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“Qualquer preconceito, qualquer discriminação é um sinal de falta de desenvolvimento intelectual e emocional”

A voz de Richard Zimler será sempre a voz do amor. Arauto da inclusão, da diversidade e de uma incessante procura da melhor versão de nós mesmos, o escritor norte-americano radicado no Porto há 35 anos tem um novo livro, ‘A Voz do Amor’, onde reúne 72 haikus cabalísticos.

Mariana Morais Pinheiro
Escrito por
Mariana Morais Pinheiro
Directora Adjunta, Porto
Richard Zimler
Fotografia: João Saramago | Richard Zimler
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Depois de mais de uma dezena de romances, de muitos contos e de muitos livros para crianças, agora temos literatura num formato completamente diferente. Os haikus, que são uma forma curta e incisiva de poesia japonesa, que obedece a uma estrutura silábica muito particular. Porquê esta mudança de registo?
Este é um projecto muito curioso. Quando o meu editor lançou a versão em inglês, nos Estados Unidos, pela editora Penguin [Books], foi uma surpresa enorme. E várias pessoas do mundo do haiku disseram: “Isto não faz sentido nenhum”. E não foi por não obedecer às regras, porque eu cumpri as regras silábicas, mas porque disseram que os haikus têm a ver com a natureza e têm a ver com uma surpresa da natureza e do ser humano. Foi aí que pensei: “Não, eu vou casar duas tradições muito diferentes: o misticismo judaico e o haiku”. Porquê não? Porquê não ter uma aventura literária? E para mim funcionam muitíssimo bem. Em parte, porque o misticismo em todas as tradições – tradição judaica, cristã, budista, etc. –, envolve mistérios, envolve surpresas, revelações inesperadas. Então, o haiku foi uma opção completamente natural. Para mim, faz todo o sentido. 

O haiku já era uma prática habitual na sua vida como escritor ou foi um terreno completamente novo que decidiu explorar?
Eu já tinha algum conhecimento dos haikus do [Matsuo] Bashô, o mais conhecido poeta japonês, e sempre gostei desse aspecto rápido e de revelação dos haikus, em que a última frase, normalmente de cinco sílabas, nos deixa: “uau, caramba, eu não estava à espera disto”. E eu adorava isso. Entre romances não tenho força para escrever contos ou textos sérios ou criar ficções. Não tenho, porque dou tudo ao livro anterior. Então, decidi, entre livros, criar outro projecto. Comecei a escrever os haikus, que envolviam alguma pesquisa também, porque voltava aos meus livros da Cabala para descobrir novos conceitos, tradições, ideias, noções. Então, entre livros, escrevia, sei lá, 20, 30, 40 haikus e, depois, começava outro romance. Deixava os haikus numa gaveta e, na fase seguinte, depois de acabar o novo livro, escrevia mais 20, 30, 40. Passados seis, sete ou oito anos, já tinha completado mais de 100 haikus. E pensei: “O que é que vou fazer com eles?” Há uma tradição judaica, mística, que diz que Deus tem 72 nomes. Muitos deles secretos. “Então, vou escolher os 72 melhores, os mais importantes para mim e fazer um livro”, pensei. 

Há pouco falávamos da capacidade de síntese de um haiku e da sua possibilidade de surpresa e deslumbramento. Será esta a fórmula eficaz para estimular o pensamento crítico numa sociedade sem tempo para ler ou reflectir?
Sim, eu acho que a vantagem do haiku é essa. A surpresa obriga-nos a pensar e eu gosto disso. Eu quero que o leitor pense sobre uma cena num romance, uma personagem ou um poema. Eu não quero que o leitor fique indiferente ou aceite logo o que eu digo. Não, eu quero que ele critique ou pense sobre a sua vida. E acho que muitos destes haikus obrigam o leitor a pensar sobre a sua vida. E isto, no fundo, cria uma ligação quase mágica com o poema e com o autor. E eu acho isso bonito. Em inglês, há um poema que funciona muitíssimo bem: “You will never solve every mystery – God is not a whodunit” [Nunca resolverás todos os mistérios – Deus não é um policial]. É profundo. Não vamos solucionar todos os mistérios, não vamos solucionar as coisas transcendentes, não vamos solucionar tudo, porque a vida, o mistério de estarmos aqui, não é um policial. Não vai haver um fim do género: “Foi ele que cometeu o crime”. Não, não é assim. Então, acho que isso provoca emoções diferentes no leitor e, outra vez, obriga o leitor a pensar sobre o que é esta realidade.

Já que falamos de Deus, neste livro há uma ligação muito grande à Cabala, a Deus e ao amor. Vivemos tempos em que em nome de Deus se fazem muitas coisas más. Este livro reflecte uma interpretação do que é Deus para o escritor? 
Pois, daí vou voltar para a tradição cabalística. Há um cabalista famoso que disse, uma vez, que as únicas mãos que Deus tem para mudar este mundo são as nossas. Esse é o meu conceito de Deus: que o mundo funciona através de nós e através de todos os seres da Criação. Não podemos estar à espera que algum ser transcendente o faça. E há outro [haiku] que diz que se desejar ver alguma coisa de Deus, temos de olhar para o espelho. Somos uma criação deste universo. E as mesmas leis físicas que determinam o nosso corpo – duas pernas, dois olhos, dois braços, um cérebro –, são as mesmas leis que determinam as galáxias. Essas leis físicas, quânticas, não mudam. Essas leis físicas, em parte, são Deus. Eu sei que talvez seja estranho, mas Deus é o que determina a Criação. O que determina como nós somos. E aquele Deus dos fundamentalistas, em que há regulamentos e regras e temos de comer isto e não podemos dormir com aquela pessoa, para mim, isso não tem absolutamente nada a ver com a Cabala. 

Além desse haiku [“As mãos de que Deus precisa/ para alterar este mundo/ estão a segurar este livro”] há muitos outros que parecem depositar nos Homens a possibilidade de fazer a diferença. Ainda há salvação no meio de tanta guerra e de tanto retrocesso civilizacional? Ainda acredita na humanidade?
Sim. Eu presumo que o leitor de um livro meu seja tão inteligente e sensível como eu. Quando escrevi estes haikus, presumi que o leitor vá entender ou vá fazer a sua interpretação. E, dessa perspectiva, ainda tenho muita fé e muita confiança na humanidade. Por outro lado, estamos a viver um retrocesso civilizacional terrível neste momento, sobretudo no meu país de origem. Eu não vou visitar os Estados Unidos enquanto o Trump lá estiver. Eu escrevo contra o Trump desde 2016. Eu sou uma pessoa pouco importante, mas eles sabem que eu escrevi esses artigos. Não quero ficar preso, nem ser interrogado no Passport Control, nem pensar. E o Trump está a criar rapidamente uma espécie de ditadura. Há uma polícia de emigração, a ICE, que está a prender pessoas que têm residências nos Estados Unidos, até cidadania, mas que por terem nomes latinos ou uma aparência mais escura estão presos sem razão, sem direito a ir a tribunal, e são postos em prisões ou são deportados para países que não têm nada a ver com eles. Então, parece ficção científica, porque eu, ingenuamente, nunca pensei que isto podia acontecer nos Estados Unidos e nunca pensei que podia acontecer tão rapidamente. Estupidez minha. 

Mas não podemos ter medo de falar sobre estes assuntos…
Curiosamente, aconteceu-me uma coisa desagradável. O Clip [Oporto International School] pediu-me para fazer o discurso de final de ano dos alunos e pediu-me para escrever sobre o poder das palavras. Muito bem. Fiz isso. E, basicamente, falei 15 minutos sobre a importância das palavras e que hoje em dia vivemos numa sociedade em que é muito fácil insultar e desumanizar as pessoas através das redes sociais. E nunca deveríamos fazer isso. Nunca deveríamos falar de pessoas como insectos, como animais... Desumanizar leva-nos a deportações, a pessoas presas sem julgamentos e a matanças, como a que aconteceu no Holocausto. Os nazis referiram-se aos judeus como insectos, cães, porcos... E eu confessei que fiquei muito perturbado quando o governo israelita se referiu aos palestinianos como animais e terroristas não humanos. Porque muitas pessoas em Israel olham para os palestinianos como seres inferiores, animais, pessoas que não merecem a mesma dignidade que nós. E eu disse que isso era muito perigoso. Durante esse discurso, quando utilizei a palavra genocídio, três pessoas da audiência gritaram qualquer coisa. Eu não ouvi o que eles disseram, porque a acústica no palco era péssima. Nunca me tinha acontecido, fiquei nervoso, mas continuei a falar. Depois do discurso, recebi à volta de 50 mensagens de apoio, de professores, alunos, pais, a dizer que foi espectacular; recebi um aplauso de pé. Mas tudo o que eu sabia é que havia críticas e recebi, depois, duas mensagens de ódio de israelitas a insultar-me. Fiquei muito perturbado, porque 95% da minha mensagem era sobre tolerância, apreciação da diversidade, inclusão e gentileza para com outras pessoas. 

O judaísmo é um tema que o Richard aborda com frequência e que está muito presente nos seus livros. O que está a acontecer agora está a diminuir a consideração das pessoas pela religião?
Sim, eu acho que está a fazer com que o antissemitismo de pessoas que já sentem algum preconceito contra os judeus aumente ainda mais. O que é um perigo, é terrível. Qualquer preconceito, qualquer discriminação é, para mim, um sinal de falta de desenvolvimento intelectual e emocional. Infelizmente, há muita gente no mundo que não consegue distinguir entre um judeu e um israelita. Eu não tenho nada a ver com Israel, sou cidadão português e americano. Não tenho investimentos em Israel. Já critiquei o governo israelita, não quero exagerar, dezenas de vezes. Estou muito crítico deste governo de Netanyahu. Estes crimes contra a humanidade que estão a acontecer em Gaza não têm defesa. Eles estão a fazer uma limpeza étnica. A ideia não era eliminar o Hamas (obviamente eles queriam eliminar o terrorismo), mas o verdadeiro fim, o verdadeiro objectivo, era criar uma limpeza étnica de pelo menos uma parte, se não de toda a Faixa de Gaza.

Vai continuar a escrever haikus entre romances e a espalhar A Voz do Amor
Já não escrevo haikus, mas talvez no futuro me torne poeta [risos]. À medida que eu vou envelhecendo (ainda consigo manter a estrutura e os personagens de um livro na minha cabeça durante dois ou três anos, isso não é um problema), mas todos os escritores dizem que chega um momento, com 80 anos, 85 anos, em que isso já não é possível. Uma amiga muito querida minha, da Califórnia, disse-me uma vez que, quando ela tinha 83 ou 84 anos, deixou de escrever ficção e começou a escrever poesia. Então, se calhar mais tarde, vou tornar-me poeta, porque já não me vai ser possível escrever romances de 400 páginas [risos].

O livro chegou às livrarias no dia 26 de Junho, em português e inglês, publicado pela Cultura Editora. Custa 18,50€.

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