Temos que agradecer à ciência por esta cerveja. Corria o ano de 2010 quando os primeiros protótipos foram criados nos laboratórios de engenharia biológica da Universidade do Minho, pelos investigadores Filipe Macieira e Francisco Pereira. Dois minhotos com nome de árvores de fruto que perceberam o potencial das suas raízes no mundo das cervejas artesanais. Nove anos depois, a Letra é uma das marcas mais criativas e consolidadas no mercado nacional.
No dia mais quente do ano, Francisco está no ArtBeerFest, em Caminha, onde a Letra se mostrou pela primeira vez ao mundo em 2013. Filipe está na nova Letraria a saciar a sede entre reuniões. O som dos sinos enche a sala. No coração de Braga, ao lado da Sé, a Letra acaba de instalar-se na terra que a viu nasceu. Nas mesas, amigos conversam à volta de copos. Nas estantes, garrafas são intercaladas com livros de autores como Júlio Verne ou Eça de Queiroz. Depois de abrir um brewpub na fábrica em Vila Verde (2015) e a Letraria Craft Beer Garden no Porto (2017), aqui a Letra é levada à letra. O bar funciona como biblioteca comunitária, onde os clientes são convidados a trazer e a levar livros, ou a sentar-se a beber e a ler.
As 23 torneiras de cerveja incluem as propostas da casa e de outros cervejeiros nacionais e internacionais. Seguem uma tubagem até aos barris, que estão instalados numa câmara com temperatura controlada, à volta de 4 graus. A Letra tem no mercado quatro gamas: o abecedário (A Weiss, B Pilsner, C Stout, D Red Ale, E Dark Strong Ale, F Indian Pale Ale), as cervejas maturadas, as experiências de edição limitada e as colaborações. No mundo das cervejas artesanais não há concorrência, há uma comunidade.
Na Letraria, as cervejas harmonizam com petiscos, como a tábua de queijos e enchidos, rojões à Minho e croquetes de carne com queijo. Pratos como naco de alcatra ou entrecôte de carne maturada são especialidades do chef brasileiro José Pedroso (nome artístico: “Zé Cozinha”). A cerveja entra em quase tudo. Como a sanduíche stout, um estufado de pá de porco e cerveja preta que fica a cozinhar durante quatro horas até o osso se separar da carne. Ou a mousse de chocolate stout, que é acompanhada por uma bolacha feita com drèche, um subproduto da cerveja. Aos domingos de manhã, o brunch (15€) é uma boa opção de programa.
À porta da Letraria estão duas barricas de madeira. Uma delas já serviu para maturar uma stout da Letra. Se o mundo da cerveja artesanal já é diverso, quando o produto é maturado em pipas abre-se um universo de possibilidades. A passagem pelas barricas adiciona notas de madeira e da essência do líquido que esteve lá dentro, criando complexidade no aroma e sabor da cerveja. “Fomos a primeira marca a estagiar cervejas em barricas, em 2013. Actualmente temos perto de 60”, conta Filipe Macieira. “À medida que envelhece, o aroma alcoólico fica cada vez mais redondo e equilibrado e os caramelos do malte vão evoluir.” Começaram com vinho do Porto, mas agora também criam híbridos com Moscatel do Douro, whisky fumado, aguardente vínica ou Alvarinho.
A Letra, orgulhosa das suas raízes, sempre se rotulou como Cerveja Artesanal Minhota. “Somos a única marca que faz referência a uma região no nome. Do ponto de vista do marketing, muita gente diz que é redutor. Aliás, até pode ser um palavrão” – em italiano, uma mignotta é uma puttana. “Estivemos em Itália e a coisa ficou estranha”, conta Filipe, entre risos. “Mas foi uma estratégia criar uma marca com identidade regional. Somos do Minho, a fábrica está implementada em Vila Verde e usamos ingredientes locais.”
Têm feito parcerias com produtores da região, como o enólogo Anselmo Mendes e a Adega Ponte da Barca, com a qual estão a criar uma trilogia de cervejas inspiradas nas castas dos vinhos verdes. Criaram uma sidra com a minhota maçã porta-da-loja e usam frutos dos coloridos campos vilaverdenses, como as amoras, os mirtilos e as framboesas. No meio da ditadura do duopólio das cervejas industriais, seria impensável existir uma cerveja genuinamente minhota. Mas as raízes da Letra estão bem plantadas, embebidas na identidade da região e com visão de futuro. A Letra começou no A, mas tem sede do infinito.