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Um cardume barroco

Escrito por
Miguel Branco
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Dele emerge um romance contaminado. António Cabrita e São Castro dirigem a primeira produção da temporada da Companhia Nacional de Bailado. ‘Dido e Eneias’ estreia esta quinta no Teatro Camões.

Há uma austeridade na forma como Dido deambula, só, no arranque do espectáculo. Uma solidão movida a contenção, logo interrompida por um numeroso cardume de bailarinos, que a abraça, que lhe confere alguma estabilidade. Tanto quanto lhe confere terramoto. É que um dos maiores peixes do cardume chama-se Eneias e é um herói troiano, daqueles sem aparente calcanhar de Aquiles. O mesmo perfeccionismo se espera deste Dido e Eneias, ópera barroca de Henry Purcell que António Cabrita e São Castro agarram para abrir a temporada da Companhia Nacional de Bailado já esta quinta-feira.

E se por Eneias (e pela sua suposta perfeição) não metemos as mãos no fogo, por António Cabrita e São Castro, dupla de coreógrafos que trabalha em conjunto há sete anos, aceitamos um quente nos dedos. Desafio como este (onde se atiram pela primeira vez a uma ópera, a uma obra cantada, e logo esta, tão icónica) só lá vai com um enorme trabalho de pesquisa, que os fez parar no libreto da peça, arma essencial, como confessa São Castro: “Baseámo-nos muito no libreto, nas palavras, coisa algo recorrente do nosso trabalho, queremos a palavra para construir movimento, para que exista uma tradução”. 

As legendas que nos foram surgindo na cabeça sugerem a tal imagem do cardume, de uma árvore meio rasteira, cujos ramos entrelaçados vão suportando alguns dos solos. Que não são muitos, diga-se, mas que funcionam como contaminação; sair nunca é sair por completo, basta pensar na personagem do Feiticeiro (que aqui está para estragar o amor entre Dido e Eneias), que se move algures entre um maestro de orquestra e um Harry Potter sem pés de chumbo e que volta sempre.

Eneias, por sua vez, insiste em manter os braços no ar, mesmo quando já não está a agarrar o trapézio que o fez aparecer. “Quando o Eneias aparece e canta nesta ópera é sempre uma coisa impositiva, até máscula. Nós tínhamos a ideia de tornar o Eneias uma personagem mais imagem, uma imagem tão imponente que se torna frágil, como se ficasse sempre pendurado", explica António Cabrita. 

Esta é, portanto, a forma que os dois coreógrafos olham o Barroco. Perante a música coloquial, o ambiente de corte inglesa, uma densidade bucólica onde não podemos sentir tudo, há uma sociedade de onde emergem pensamentos e heróis, falhas e ousadias. Mas o cardume perdoa amigos, o cardume é amigo.

Teatro Camões. Qui-Sex 21.00. Sáb 18.30. Dom 16.00. 5€-25€. 

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