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"Mais do que programa de cultura, a Cornucópia foi um programa de vida"

Escrito por
Maria Ramos Silva
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É com emoção que Maria Helena Serôdio revisita o percurso da companhia. Em 2001, a professora catedrática e investigadora do Centro de Estudos Teatrais da Faculdade de Letras de Lisboa publicava o livro Questionar apaixonadamente: o teatro na vida de Luís Miguel Cintra (Livros Cotovia), sobre o antigo colega de universidade e fundador da casa que agora se despede do público.

Consegue avaliar a dimensão do vazio que traz o fim da Companhia?
Não é só a questão de acabar com uma companhia que durante muitos anos manteve uma qualidade e uma exigência artística extraordinárias, é também matar parte de Lisboa. De algum modo, a cidade não é só o lugar onde se habita, mas todos os focos de vivência, de produção de cultura. Quando alguma destas coisas de âmbito mais espiritual e portador de futuro desaparece, empobrece a respiração de todos nós, que olhamos para quem faz a arte como alguém que produz um certo oxigénio humano, que nos enriquece, que nos dá uma estrutura mental e artística que reivindicamos como sendo também nossa. Tem a ver com os tempos que vivemos e com uma visão distorcida da importância que a cultura e a arte têm na vida humana hoje em dia.

Que marca identitária mais associa ao grupo?
Tive a alegria de ter partilhado a universidade com o Luís Miguel, fomos colegas. Partilhámos as improbabilidades, debilidades, mas também uma afirmação de cultura e arte extraordinárias. Um dos aspectos importantes desta companhia foi desde o início ter encarado a arte como uma forma de cultura e aprendizagem. Neste caso em particular, era gente que vivia um certo contexto universitário na Faculdade de Letras e que de algum modo subiu a um nível de exigência artística que quase não imaginávamos possível naqueles tempos, e que afirmavam que a vontade do homem é superior às suas reclusões.

É indissociável de uma geração.
Há toda uma geração que se revê com orgulho e alegria naquilo que foi e continua a ser a companhia da Cornucópia. Identificávamos uma exigência; e uma forma de fazer teatro, não apenas enquanto acto artístico mas também público, de mobilização estudantil, política. Foi uma vivência em comum no coração da cidade, chamando a si o Bairro Alto e recuperando aquilo que foi o teatro do século XVIII.

É o fim de um certo modelo de fazer teatro?
Infelizmente, é verdade. Representaram uma forma de fazer teatro que chamou bastante a atenção, por estarem sempre na linha da frente. Os tempos mudaram. As formas de defender a cultura podem ser outras e não menos importantes, mas não há dúvida que a Cornucópia criou um selo de qualidade que se manteve durante muitos anos. Não é coisa pouca, com as dificuldades que temos, com um público que às vezes não é tão generoso quanto deveria ser.

Que momentos mais recorda na sua relação pessoal com os espectáculos da companhia?
Penso que me relacionei sempre com os espectáculos no sentido de ser alertada para determinados autores. Nesse aspecto vejo um enriquecimento muito grande. Não faziam os autores mais fáceis, mais conhecidos. Tinham uma cultura de teatro mas também de escrita. A circunstância de fazerem também um grande programa para cada espectáculo. Há uma marca de construção da arte como uma forma de saber. A Cornucópia sempre manteve essa marca de poder ensinar ao seu público, o público fiel e um mais alargado que se calhar não ia a todas as produções. Foi uma falange de descoberta. Mais do que programa de cultura, a Cornucópia foi um programa de vida, de respiração da cidade.

Como se pode eternizar este saber produzido na efemeridade do palco?
É uma grande tristeza. Penso que haverá um ou outro espectáculo gravado, que será uma memória extraordinária. O teatro tem essa riqueza, o cintilar de uma vida em conjunto, mas tem também essa debilidade. Por vezes, queremos confirmar coisas concretas junto de quem não viu o espectáculo e não temos mais do que o nosso testemunho. No caso da Cornucópia, uma das construções extraordinárias que sempre tiveram é a produção do programa. Sempre foram muito cuidadosos, e têm ali alguma memória. Quando os relemos quase que voltamos a ver os espectáculos vivos, mas não há dúvida que é irrepetível.

Já falou com Luís Miguel Cintra?
Ainda não. Tenho medo de ligar e desatar a chorar. Não é momento para isso.

Recorde aqui algumas das peças mais marcantes da companhia. 

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