A cadeira estava ali. Aqui não havia nenhuma mesa. Por que é que mudaram as coisas de sítio? E você, quem é? André, que é João Perry, está à toa. De repente descobriu-se noutro lado, outra casa, outras pessoas. A confusão é visível no rosto e no corpo e nos gestos da personagem – e ainda estamos no início da jornada descendente que o actor vai conduzir através da demência.
Para apagar qualquer dúvida, a peça de Florian Zeller (n. ) tem o seu lado de farsa negra, os seus momentos culpadamente divertidos, é certo, mas é uma obra triste. Tão triste quanto comovente. Pois trata daquele dia, algures naquela parte da vida a que chamamos terceira idade porque queremos realmente evitar dizer velhice, em que o mundo se torna um quebra-cabeças a que parecem faltar sempre peças para completar uma tarefa, concluir uma ideia, perceber quem é esta gente aqui à volta ou de quem são aqueles comprimidos. Não acontece nem acontecerá a todos. Acontece a tantos, porém, que todos estamos perto ou sabemos de alguém com alguma forma de demência e conhecemos, ou recordamos mais vivamente os seus sinais mais patéticos e perversos. O momento em que pensámos que estavam a gozar connosco, aqueloutro em que a violência parecia uma solução, ou o internamento (quase sempre outra forma de violência), para dar exemplos cruamente reais, coisas que passam pela cabeça de quem lida com a doença e que o texto expõe. Como se a prova da degradação dos outros fosse também sinal do nosso possível futuro. É, se calhar, para aí, que o subconsciente olha, quando vê André atravessar os escolhos da elegante dramaturgia de Vera San Payo de Lemos e da serenamente armadilhada encenação de João Lourenço. Oscilando no tempo sobre o seu cenário (com António Casimiro), a sua iluminação (com Alberto Carvalho) e o vídeo de Luís Soares, o encenador criou um dispositivo dinâmico e dramaticamente eficaz na construção deste percurso através de um cérebro avariado que nos leva por labirintos sem fim.
Apesar de muito bem apoiado nas representações de Ana Guiomar, João Vicente, Patrícia André, Paulo Oom e Sara Cipriano, é a João Perry que pertence a cena. É ele quem faz a personagem agarrar-se desesperadamente ao que pensa ser real, e que na verdade é a sua realidade, o seu mundo a que os outros tentam aceder antes de sucumbirem ao cansaço e à frustração. Antes de desistiram. Antes do abandono. E principalmente é ele, João Perry, quem nos faz acreditar em André. Na pessoa. Não no fardo.