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Coração de um pugilista
Fotografia: Filipe FigueiredoMiguel Guilherme e Gonçalo Almeida em Coração de um pugilista, de Lutz Hübner, com encenação de João Lourenço

“Isto é horrível, pá. Não há nada de humano entre as pessoas?”

Como é que se encara a vida quando ela nos dá uma tareia? ‘Coração de um pugilista’ fala sobre isso e sobre outras questões de vida e morte. A peça estreia-se sábado no Teatro Aberto.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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A velhice, a solidão, o abandono, as memórias que se vão fossilizando na raia do que, de repente, é a nossa nova realidade. E, claro, o conflito de gerações, a perda de entendimento, de uma visão comum, de espaço de diálogo. Há muito de violento e melancólico a acontecer em Coração de um pugilista, mas também de esperançoso, de solidário. Escrita por Lutz Hübner e distinguida com o Prémio Alemão de Teatro para Jovens em 1998, a peça gira em torno de duas pessoas à margem da sociedade: um rapaz de 16 anos, a desenvolver trabalho social como pena de um crime que cometeu, e um antigo pugilista, aposentado num lar de idosos, a planear o seu próximo round. A relação que vão criando – primeiro de tensão e desconfiança, depois de afecto e cumplicidade – é o mote para reflectirmos sobre estratégias de luta, que é como quem diz de vida. A encenação de João Lourenço, numa versão sua e de Vera San Payo de Lemos, que também assina a dramaturgia, estreia-se no sábado, 29 de Outubro, no Teatro Aberto.

“Eu vi [uma outra encenação da peça] e achei interessante, mas não me interessava [fazer]. Achei um bocado naturalista, e para gente bem comportada”, recorda João Lourenço. “Agora… Passaram anos, estava cá no repertório, a Vera tinha traduzido e começou a fazer sentido, talvez pelo que tem acontecido, porque apresentamos sempre espectáculos próximos da realidade, e não há dúvida nenhuma, por incrível que pareça, que este espectáculo – o nosso – o é”, assegura o encenador, depois de um ensaio corrido na Sala Vermelha, onde Coração de um pugilista estará em cena até ao final de Dezembro. “Começámos a conversar e… Espera aí, está a haver uma guerra, de uma desumanidade, e está tudo parado, a ver. Isto é horrível, pá. Não há nada de humano entre as pessoas? É só brutalidade? E começámos a pensar ‘e aquela peça, pequenina, que vimos lá?’. É uma peça assim muito humana, muito simples. E se a gente pegasse nisso?”

A ambição é, sabemos então, recuperar o sentido de benevolência, mas para fintar a barbárie é preciso, porventura, observá-la primeiro. Em palco também, como num combate de boxe. Num lar de idosos, num quarto pequeno e despojado, Miguel Guilherme protagoniza o antigo pugilista que, com um aspecto debilitado, já numa cadeira de rodas, se apresenta a Jojó como um alvo fácil. O jovem delinquente, interpretado por Gonçalo Almeida, entra na ofensiva. Está ali por obrigação, por sentença do tribunal, e a vontade de trabalhar é proporcional ao seu amor ao próximo, ou seja, mais ou menos nenhuma. A primeira cena é, como seria de esperar, de confronto. “Um dos temas da peça é precisamente a violência, como se lida com a violência e como é que dois indivíduos completamente diferentes – ou dois países – se podem entender e chegar a uma paz”, diz-nos Vera San Payo de Lemos. “Por outro lado, remete-nos também para esta questão muito recente da pandemia, das pessoas mais velhas fechadas nos lares.”

A solidão dos idosos institucionalizados e o transtorno que causa ser visto como um fardo não só está presente como é central à personagem de Miguel Guilherme. A violência não é só física. Quando uma pessoa só se tem a si como companhia, o quadro torna-se deprimente. E, das duas uma, ou se atira a toalha ao chão ou se levanta do tapete. “São sete cenas, sete dias, sete rounds”, desvenda a tradutora e dramaturga, antes de chamar a atenção para os interlúdios, que acontecem através de projecções no próprio cenário. “[Essa parte] não está no texto, surge da encenação e, claro, daquilo que o texto sugere.” Da ideia de que, talvez, toda a história é apenas um sonho. “Como se o rapaz fosse, na verdade, uma espécie de Anjo da Morte, que é o que nos leva a dar este lado mais onírico ao espectáculo, e daí também os vídeos [de João Lourenço e Jorge Albuquerque] terem essa componente de qualquer coisa que vem da memória dele, daquele torpor em que ele está, e onde os tempos se misturam.”

Sonho ou não, as problemáticas são reais, e de hoje. No fim, espera-se que a empatia prevaleça, que se converse mais, que se estenda a mão, que se troquem os sapatos com o outro. “A violência existe, mas pode não existir. Se [as novas gerações] chegassem a casa e conversassem com os pais”, sugere João Lourenço. Em palco, Jójó não tem família, mas encontra o interlocutor de que precisava no antigo pugilista. “Eles querem os dois sair, um de uma maneira, o outro de outra. E é giro vê-los ajudarem-se um ao outro. Com armas simples, armas humanas. Não é com uma metralhadora. É com fantasia e poesia. E há muita gente, a maioria, que pode ser tocada ainda. Mas como? É uma coisa que temos de resolver.”

Teatro Aberto (Lisboa). 30 Out-30 Dez, Qua-Qui 19.00, Sex-Sáb 21.30, Dom 16.00. 8,50€-17€

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