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Hans Neuner
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Hans Neuner: “Adoraria ter um restaurante em Lisboa, mas não de fine dining”

Num dia de festa, Hans Neuner recebeu-nos no Ocean, o restaurante onde tem duas estrelas Michelin e onde há muito se espera que conquiste a terceira.

Cláudia Lima Carvalho
Escrito por
Cláudia Lima Carvalho
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É irrequieto, com uma energia que parece não esgotar-se, e uma paixão que conquista qualquer um. Respeitado e admirado pelos pares, Hans Neuner, à frente do Ocean, o restaurante com duas estrelas Michelin do Vila Vita Parc Resort & Spa, em Porches, no Algarve, é hoje um dos melhores chefs do país e um dos melhores do mundo, de acordo com os The Best Chef Awards que o colocaram na 50.ª posição. Austríaco, a viver em Portugal há quase 15 anos, Neuner não se coíbe de mergulhar cada vez mais na gastronomia nacional. Aproveita o Inverno, quando o Algarve adormece, para viajar. E foi quando o país se fechou que aprofundou a ligação ao país. De mochila às costas, desbravou o continente para o representar à mesa. Um ano depois, passou para as ilhas, e levou a Madeira e os Açores para o Algarve. Já em 2022, seguiu as pisadas de Vasco da Gama e há quem lhe aponte o mais afinado menu do Ocean. Quando o encontramos, a propósito de um jantar especial de comemoração dos 30 anos do Vila Vita, o Reach for The Stars, com todos os chefs com duas estrelas Michelin em Portugal, Hans Neuner já tem ideias para o que se seguirá. Resta a terceira estrela. Será desta? 

Ocean, VILA VITA Parc
VILA VITA Parc

Quando olha para trás, era aqui que se via?
Quão para trás? [risos] Para ser honesto, quando há 20 anos estive em Lisboa não imaginei que viesse trabalhar para cá. Foi uma coincidência. Um dia, estava a trabalhar na Alemanha, e o director-geral [do Vila Vita, Kurt Michael Gillig] ligou-me. Disse-me que estava a planear abrir um novo conceito de fine dining no hotel. Dei-me bem com ele ao telefone, então desisti do meu trabalho na Alemanha e vim para cá, sem nunca ter estado aqui. Para ser honesto, achei que ficaria dois, três anos e depois iria para outro lado. Não planeei ficar tanto tempo. Já são 14 anos, mas temos passado uma bela temporada aqui. É um lugar privilegiado para se trabalhar, não só por causa dos produtos, mas também pelo apoio da direcção e da equipa do hotel. O tempo é maravilhoso, as pessoas são óptimas. Não acho que se encontre melhor sítio para trabalhar. 

O que é que gosta mais no Ocean?
A vista? É incrível.

Mas o que é que o torna num dos melhores restaurantes?
É o trabalho e o esforço em equipa, são as pessoas que fazem o trabalho diário. Toda a gente pode ter uma boa localização e os mesmos produtos. Mais ou menos, vá, não serão os mesmos, mas há muitos recursos por onde encontrar produtos que os outros não têm. O mais importante é mesmo o esforço da equipa. Estou muito feliz com isso, é muito motivador. Se tens uma equipa jovem que é muito motivada e que se diverte no local de trabalho, isso é maravilhoso. 

Como é que funciona o trabalho diário e o processo criativo?
Toda a gente da equipa participa, mas tenho dois ou três elementos que são mais fortes no desenvolvimento e que não estão na mise en place diária e por isso têm tempo para testar muito. Mas, no final, as ideias surgem quando viajas e vais a sítios. 

Ocean, Hans Neuner
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É preciso sair da cozinha?
Definitivamente. Eu acredito que toda a gente devia fazer isso e devia procurar e ver o que os outros estão a fazer e inspirar-se por isso. Caso contrário, ficas preso na tua visão e não evoluis assim tanto. Podes procurar algumas coisas na internet, mas é sempre diferente quando vais a um restaurante, sentas-te à mesa e provas um prato em vez de veres uma fotografia. As fotografias de comida são lindas, mas... 

Não têm sabor.
Exacto. É por isso que a comida nos últimos cinco, dez anos ficou muito visual. Se pensarmos bem, há 20 anos, a comida era muito mais sobre sabores e tinhas de viajar para ir aos restaurantes. Não podias ir à internet para ver o que estavam a fazer em França ou em Nova Iorque. Acho que muitas coisas mudaram ultimamente. Geralmente, a inspiração vem de sair do restaurante. Seja quando vou pescar, seja quando vou conhecer produtores. Ajuda imenso falar com eles, ver a paixão que põem no trabalho, para que possas ter os melhores produtos, é muito inspirador.

E mesmo assim falta a terceira estrela.
Algumas pessoas adorariam tê-la, é verdade, incluindo eu. Não ficaríamos chateados se a recebêssemos, mas acho que não podemos forçar demasiado. Ou acontece, ou não. 

Acredita que vai acontecer?
Mais cedo ou mais tarde, sim. Em Portugal, não significa que tenha de ser aqui. 

Mas neste nível, quando se trabalha tanto, é frustrante não receber a terceira estrela?
No meu caso, é só um dia de frustração, quando tenho de ir à gala e eles dão as estrelas e eu tenho de voltar e dizer à minha equipa. Esse não é realmente um momento muito animado, mas não diria frustrante. Nós trabalhamos para ter clientes felizes todos os dias. São eles que pagam os nossos salários. Esse é o foco principal: clientes felizes. Podemos ter um dia mau, estamos bem com isso, mas não acordamos a pensar nisso.

Não há essa pressão?
Bem, a empresa gostava de a ter, sim, mas... [risos]

É difícil trabalhar assim?
A cada ano que passa fica mais difícil [risos]. Honestamente, o problema é que toda a gente fala disso. Não posso dizer que seja irritante, mas até quando podes aguentar ir às galas e isso não acontecer? No meu caso, eu só lamento pelos rapazes e pelas raparigas que trabalham na cozinha e que todos os dias dão o seu melhor e depois eu tenho de voltar aqui e olhar para os olhos deles. É um bocadinho frustrante, mas faz parte. 

Porque é que Portugal ainda não tem nenhum restaurante com três estrelas Michelin?
Porque ninguém nos avalia. Não há tipos portugueses que venham aqui, talvez um ou dois e o resto são outras nacionalidades. Isso faz com que não seja fácil. 

Eventos como o Reach for The Stars, onde todos os chefs com duas estrelas em Portugal se reúnem, são importantes para mudar esse paradigma?
Isso é muito importante porque partilhamos muitos interesses, aqueles que estão aqui hoje são todos realmente amigos. É como um encontro de família. Não nos vemos muito, talvez uma vez por ano na gala do Guia Michelin. Temos todos uma agenda ocupada, conseguir que nos encontremos todos no mesmo dia é muito fixe. Deixa-me muito orgulhoso, acho que isto é um dos eventos mais fixes que já tivemos. Todos disseram que sim sem hesitar, damo-nos mesmo bem uns com os outros. Não quero soar estúpido, mas noutros países onde há muitos restaurantes com estrelas Michelin há muita competição – uns não ficam muito felizes por ver os outros sempre cheios. Tenho de dizer que, no geral, em Portugal toda a gente é muito prestável. 

E aprendem uns com os outros?
Claro. Depende do quê, mas aprendes sempre qualquer coisa. E é por isso que estes eventos são importantes também para os mais novos. Numa noite eles vêem estilos de cinco ou seis chefs diferentes. 

Como é que se compõe um menu feito a tantas mãos?
Eu disse-lhes para cozinharem o que quiserem, para trazerem os seus pratos de assinatura favoritos. Depois, quem chega primeiro fica com o primeiro produto. É sempre assim. Um chega e diz que faz o carabineiro e o carabineiro desaparece. E eu organizo depois o menu. 

Rui Paula, Henrique Sá Pessoa e Hans Neuner
DRRui Paula, Henrique Sá Pessoa e Hans Neuner

E no final ganha Portugal. 
Hoje, definitivamente. Mas acho que não se pode ver isto como uma competição. Às vezes os clientes acham que nós nos juntamos e depois estamos a ver quem vai fazer o melhor prato. Isto não é uma corrida. Claro que os clientes vão sempre apontar os seus pratos favoritos, mas no final, nós, como chefs, não vemos isto como uma competição. Isto é realmente como uma família. Eu conheço a maioria dos chefs ainda antes de terem as estrelas, antes até de eu ter a estrela. Crescemos todos juntos nos últimos 15 anos, é muito fixe.

Mas quando se mudou para Portugal conhecia a nossa gastronomia?
Não, nada, zero. E agora sou considerado um dos maiores conhecedores [risos]. Só tinha estado uma vez em Lisboa. Tive de aprender tudo aqui. 

Como?
Com a minha equipa. No início, ia muito a casa deles, dos avós. Há uma avó que cozinha xerém? Eu vou, ela cozinha e ensina-me como se faz. As primeiras coisas que aprendi, as receitas tradicionais, foi assim, com as avós. Depois faço a minha cena a partir daí. Mas é preciso comer realmente nas suas casas, saber a forma original de cozinhar. 

Tem de se ir às raízes. 
Sim. E divirto-me sempre a fazer isso. 

Nesse processo o que é que o surpreendeu mais?
O que mais gostei no país foram as pessoas, provavelmente. As pessoas são maravilhosas. A forma como recebem os estrangeiros – e eu já não me sinto um estrangeiro – onde quer que se vá no país, é o maior plus

Sente alguma responsabilidade na evolução da cena gastronómica em Portugal?
Eu acredito que fomos os primeiros a fazer alguns pratos tradicionais num restaurante com estrela Michelin. Quando o fiz, não havia assim tantos restaurantes com estrela Michelin, e os poucos que havia olhavam muito para Espanha. Não quero dizer que copiavam, mas em Portugal toda a gente olhava para Espanha. Acredito que agora o orgulho dos chefs portugueses é muito mais forte do que era há 15 anos. Estão orgulhosos no que estão a fazer, nas suas equipas, nos seus pratos. Há 15 anos não era assim. Havia três ou quatro estrelas Michelin no país e eu fui a todos e nenhum cozinhava como cozinha agora. Alguns eram muito franceses. Não há nada de mau nisso, são apenas as influências. E isso mudou muito. Também houve muitos chefs novos a regressaram a Portugal e isso empurrou o país. O Sá Pessoa abriu o Alma quando voltou de Inglaterra. Isso mudou muito, muitos viram a oportunidade. 

Vê-se como uma inspiração para as novas gerações da cozinha?
Definitivamente. Vá lá… [risos] Para alguns, de certeza. 

E qual é o melhor conselho que lhes pode dar?
Façam outra coisa qualquer [risos].

Esse é o melhor conselho?
Não, o melhor conselho é que se querem mesmo fazê-lo, então comecem cedo, porque quando és demasiado velho as horas pesam. Tens de começar isto quando és novo. E depois não desistam, é preciso aguentar os tempos difíceis. E já não é tão difícil como antigamente, ninguém grita, ninguém bate – isto era tudo muito ok na minha altura. Não desistam, aprendam com os melhores. 

A violência nas cozinhas é coisa do passado?
Isso mudou, há anos que é mais calmo. A maior parte dos chefs que conheço são muito calmos. Nos anos 1990, às vezes até chapadas levávamos. 

O que mudou?
A forma como tratamos a equipa é hoje muito diferente. 

Voltando à gastronomia portuguesa, para alguém que não é de cá, é mais difícil representar essa história?
Isso sim, com toda a certeza. Mas é preciso aprender. Foi preciso estar cá algum tempo. Nos primeiros anos não cozinhávamos como cozinhamos agora. Também fazíamos muito [cozinha] internacional. Eu fiz versões de pratos que tinha feito noutros restaurantes Michelin onde trabalhei, joguei pelo seguro. Nos primeiros anos, tens de jogar pelo seguro porque a empresa espera duas estrelas Michelin, não podes lixar muito. Digamos que até à segunda estrela foi um bocadinho assim. Depois ficámos muito fortes na cena portuguesa. E fazemo-lo até agora. 

Mas foi com a pandemia que apresentou um menu 100% português. 
Com a pandemia, o menu mudou muito. Aprofundei o conhecimento do país porque tivemos mais tempo para isso. Afinal, o restaurante estava fechado. Tive tempo para visitar sítios que de outra forma eu diria ‘vou no próximo ano’. Foi o caso de Bragança. É muito bonito e bom, mas era algo que não estava no topo da minha lista. Com a covid, tive tempo para visitar várias regiões do país, incluindo as ilhas. 

Depois de um menu dedicado ao país e outro às ilhas, o que está a fazer agora no Ocean?
Neste momento, estamos a fazer a rota de Vasco da Gama, mais coisa, menos coisa. Começamos em Portugal e seguimos até Goa. Tentamos ter pratos que têm uma conexão a Portugal, como o sarapatel. 

Os clientes portugueses até podem ter esse conhecimento, mas o que acontece com os clientes estrangeiros?
Nós explicamos tudo direitinho. Cada cliente tem um pergaminho onde se explica o conceito, digamos assim.

Ocean, Hans Neuner
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Mas como é que se chega a isto? Viajar chega, quando se trata de História?
Fazemos um plano e temos pessoas profissionais a trabalhar connosco. Nós temos a ideia. No primeiro ano de covid, fizemos um menu pelo país. No ano a seguir, fizemos as ilhas. E este ano decidimos ir até à Índia. Mas temos historiadores que nos ajudam e que nos escrevem isto. Nós só lhes dizemos as estações, os pratos que queremos fazer e a ligação aos países e depois entregamos aos profissionais. De outra forma, seria lixo. Sou um chef austríaco, tenho de ter cuidado com isso. Jogo pelo seguro aqui, tenho de o fazer. 

A crítica ou a pressão das redes sociais inibe-o de alguma forma? 
Não. Sou péssimo nas redes sociais, só faço vídeos divertidos, para ser sincero. Não sinto essa pressão, sou demasiado velho para isso. 

Mas será que a comida hoje não se tornou mais do que a experiência de estar à mesa, prologando-se nas redes?
Acho que comida é muito mais do que aquilo que pões numa merda de uma fotografia, se me perguntas. As fotografias não explicam muito. Isso é a nova geração, mas temos de viver com isso. Eu uso as redes, claro, mas não para motivos profissionais, é mais por diversão. 

Então e o que se segue para si?
Hoje teremos um evento muito bonito. E amanhã é dia de folga, maravilha. 

Porque é que não o vemos muito por Lisboa?
Isso é um problema. Eu adoro Lisboa, Lisboa é uma cidade maravilhosa. Adoraria ter um restaurante em Lisboa. 

A sério?
Sim, mas não de fine dining. Alguma coisa fixe. Lisboa é fixe. As pessoas, a luz, é tudo maravilhoso. Mas sim, estamos localizados aqui em baixo, no Algarve. 

O que não é mau...
Não é mau, mas o Inverno às vezes é aborrecido. 

É muito sazonal?
E cada vez mais a temporada é maior. No meu caso, isso é um pouco um problema. 

Porque depois não há tempo para sair?
Pois. E no Inverno é verdade que é bonito, mas às vezes é aborrecido. É por isso que seria maravilhoso ter alguma coisa no Inverno em Lisboa. Mas viajamos muito nessa altura, agora vamos ter de ir ao Brasil, para o próximo menu continuar a história. O Brasil vai ser incrível, tem um contexto muito forte, bons produtos. 

Conversas na cozinha

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