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Maria Cunha, CEO da marca de sapatos Josefinas
© Marco DuarteMaria Cunha, CEO da marca de sapatos Josefinas

Maria Cunha: "Já estive com uma pessoa que me dizia que sem ela não ia ser ninguém"

Mas é. Maria Cunha fundou uma marca de sapatos, a Josefinas, que vale mais de dois milhões euros e anda nos pés de princesas, actrizes, activistas e desportistas. Conversamos com ela sobre empoderamento feminino e de moldes para cortar peles

Escrito por
Mariana Morais Pinheiro
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A marca Josefinas faz seis anos e estabeleceu os seus alicerces no empoderamento feminino e na importância da independência, também financeira, das mulheres em relação aos homens. Há dois anos lançaram a linha Suffragette, numa alusão às sufragistas que lutaram pelo direito das mulheres ao voto, e este ano as t-shirts de apoio à APAV, que entraram no mercado mesmo quando a comunicação social começou a reportar uma data de mortes de mulheres vítimas de violência doméstica. Por que é que quiseram ir por aí quando estabeleceram os valores e as missões da vossa empresa?

Não sou a única fundadora das Josefinas, mas a minha filosofia de vida, a minha forma de estar, vai ao encontro daquela velha máxima de que filhos de pais alcoólicos dificilmente não serão alcoólicos. Já estive numa relação abusiva a nível psicológico, que é tão assustadora quanto uma relação onde exista violência física. Mas os valores que a minha mãe me transmitiu (de nunca depender de um homem na minha vida), fizeram-me olhar para a diferença que há entre homens e mulheres na nossa sociedade. E, como tal, para mim uma marca ou uma empresa só faz sentido se for além de vender coisas. As Josefinas têm muito da minha personalidade. Tentamos sempre que se ensine algo mais sobre um movimento, uma mulher ou sobre os seus direitos. Acredito que é possível mudar a sociedade através das empresas e não tem necessariamente de ser só através das IPSS. As empresas podem ter um papel fundamental, mais vivo e mais activo, na sociedade. Para mim, é muito difícil criar uma empresa que não reflicta os valores dos fundadores ou, pelo menos, das pessoas mais relevantes. Em tudo o que fazemos contamos sempre uma história, partilhamos valores ou incentivamos mulheres a criarem a sua empresa e a seguirem os seus sonhos. Ajudo muitas mulheres que me ligam e não tenho problema nenhum com isso. Acho que quanto mais conhecimento partilharmos, melhor. Isto sou eu na empresa. Saindo das Josefinas, a empresa seria muito diferente, tenho a certeza.

A tua história de vida influenciou a história das Josefinas. Mencionaste que viveste uma relação abusiva. Vês muitas mulheres a passarem pelo mesmo à tua volta?

É extremamente frequente. É tão frequente que é assustador. E é um problema que não escolhe nem idades, nem escalão social. Mas dou-te um exemplo: há uns meses uma senhora que faz a limpeza no escritório e que anda sempre feliz, começou a chorar. Perguntei-lhe o que se passava e ela lá respondeu: "Sabe, é que o meu marido é mau." E falou-me de anos e anos de abuso e humilhação e o mais inacreditável nisto tudo é que os filhos, já maiores de idade, não querem que ela largue o pai porque "coitadinho, vai ficar sozinho". Disse-lhe que a ajudava no que fosse preciso, mas há uma coisa que eu sei, porque já passei por ela, as pessoas só saem das relações quando querem mesmo fazê-lo. As vítimas é que têm de sentir que não aguentam mais.

Há um trabalho psicológico que o agressor faz com a vítima que, muitas vezes, lhe tolda o discernimento para conseguir perceber que pode sair dessa situação. A dada altura, a relação abusiva é a única coisa que a vítima conhece e que acha que merece.

Exactamente. Eu já estive com uma pessoa que me dizia que sozinha eu não ia conseguir nada, que eu sem ela não ia ser ninguém. E quando te dizem isso tantas vezes, quando te isolam tanto, tu acreditas. E eu, apesar de tudo, sou uma mulher forte. Mas depois vivia naquele medo. É uma coisa inexplicável. Essa pessoa não me batia, mas ameaçava-me tanto todos os dias e metia-me imensos medos na cabeça propositadamente. Ele era uma pessoa super-inteligente, com uma grande capacidade de manipulação, e com isso foi capaz de atingir uma pessoa como eu.

Daí vocês trabalharem desta forma... Investem em mulheres. Numa intervenção tua na TEDX em Braga, em 2016, falaste na cadeia de valores. O que é isso?

Nós tentamos sempre fazer algo com um twist feminista, seja no storytelling do produto, onde falamos de uma mulher que seja relevante e que as pessoas não conheçam muito bem, seja com os nossos parceiros. Temos agora uma lancheira que é feita por uma empresa de mulheres; o packaging de algumas edições especiais é também desenvolvido por uma mulher que pegou numa empresa que ia fechar e empregou mais outras tantas mulheres. Tentamos sempre trabalhar com empresas de mulheres. Fazemos edições especiais, como a You Can Leave, Tu Podes Sair em português [colecção de t-shirts], que revertem para causas que achamos que fazem sentido, como a APAV, neste caso. Nas t-shirts aparecem desenhos de modelos com um olho pisado ou com um lábio rebentado, com o nome da colecção: "Caí das escadas", "Fui contra uma porta"...

As pessoas ainda associam muito a violência doméstica à violência física…

Sim, e agora ainda há mais coisas assustadoras. Como, por exemplo, a chantagem que é feita com vídeos [gravações privadas de teor sexual que depois são enviadas para a família e para os colegas de trabalho da vítima com o objectivo de humilhar], hackearem-te o telemóvel, entrarem-te nas redes sociais... A violência vai muito além do "levei um murro na cara".

Claro.

Mas voltando à tua pergunta, nós ajudamos crianças a terem uniformes em África, porque se não tiveres uniforme não podes ir à escola e as famílias com mais dificuldades económicas acabam sempre por comprar os uniformes para os rapazes. Contribuímos para isso com a nossa linha de calçado para criança, apesar de vendermos muito pouco, honestamente. Mas temos outra linha, com a Gloria Steinem, em que compras um par de sabrinas para ti e outro para a tua amiga e quase todo o lucro dessa venda vai para a Women for Women International, uma associação que ajuda mulheres no pós-guerra. Ensina-as a terem um pequeno negócio; incentiva-as a que os filhos e as filhas frequentem a escola; promovem acções de sensibilização para os homens tratarem as mulheres de forma igualitária; fazem cursos que, ao final de um ano, te dão capacidades para criares a tua micro-empresa em que também tens acesso a micro-crédito. Tudo isto permite a independência. E sempre que o mês nos corre bem, fazemos um donativo para aqui ou para ali.

Voltando à vossa história, por que é que optaram por criar uma marca de saltos rasos, quando há seis anos o universo feminino estava ainda tão ligado aos saltos altos?

Convidaram-me para fazer parte de um painel de júri em que havia uma série de pessoas a fazerem apresentações tipo pitch. E a Filipa [também sócia das Josefinas] apareceu com essa ideia de fazer rasos. E eu perguntei-lhe: "Mas há mulheres que querem usar rasos?". Não estava eu a antever estes tempos. Há seis anos não se pensava na loucura dos ténis. Ela não passou [à fase seguinte], mas manteve-se em contacto comigo. Depois, andei a fazer umas pesquisas de marcas, como a Repetto e outras italianas que faziam ballet flats, e pensei: "Não percebo nada de sapatos, mas isto parece-me interessante".

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O investimento inicial foi de 30 mil euros, certo?

Foi mais ou menos isso.

Começou tudo a partir de um escritório em Braga.

Que ainda lá está, é o mesmo T6 ao pé da Taberna Belga, com vista sobre o estádio.

De Braga para Nova Iorque... Já agora, como é que isso aconteceu?

Quando arrancámos, disse logo: "A primeira loja que tivermos vai ser em Nova Iorque. Meti isso na cabeça, às vezes gostava de meter menos coisas na cabeça, dava-me muito menos trabalho. Depois entrou uma venture que nos permitiu abrir a loja em Nova Iorque (na altura sem noção nenhuma, sem qualquer experiência em retalho fomos para uma das cidades mais competitivas do mundo). Fizemos um contrato de um ano e, no final desse ano, fechámos a loja. Estava a ser de loucos, mas foi uma experiência espectacular. Fomos das poucas empresas em Portugal que, sozinhas, sem sócios nos EUA ou no Canadá, abrimos uma loja. As pessoas adoravam a loja e nós também, mas decidimos regressar às nossas origens que estão no online. 80% dos nossos recursos estavam a ir para uma coisa que dava 20% de retorno. Não fazia sentido.

Como é que são feitos os vossos sapatos?

Não temos moldes para cortar peles, por exemplo, fazemos tudo com uma cortadora à mão. Temos algumas máquinas que ajudam no processo, que não é 100% artesanal, mas diria que anda pelos 70%. E temos uma pessoa que vê, par a par, se está tudo bem com os sapatos. A fábrica fica em São João da Madeira e usamos os melhores materiais dentro do nosso budget. A maior parte são italianos. Também temos alguns portugueses, mas ainda não conseguimos encontrar por cá tudo o que queremos. Em Portugal, onde temos preços mais baixos do que no resto do mundo, um par de sabrinas custa 129€ e os ténis andam à volta dos 300€.

Vocês têm as sabrinas mais caras do mundo. Porquê?

Isso foi muito giro. Surgiu na sequência de estarem sempre a desvalorizar o que fazíamos. As pessoas não têm noção do trabalho que dá fazer um par de sapatos. O sapato tem ergonomia, não é como fazer uma t-shirt. Num sapato, um milímetro faz muita diferença num pé. E os sapateiros com quem trabalhamos já têm anos de experiência disto. Alguns trabalham desde os 14 anos. E as pessoas insistiam que não percebiam porque é que as nossas sabrinas eram tão caras e que encontravam muitas à venda não sei onde por 10€. Sabe-se lá em que condições é que foram feitas. Portanto, a nossa resposta foi: "Ai é? Então vamos fazer as sabrinas mais caras do mundo." E pusemos-lhes jóias.

Quanto custavam?

3360 euros.

Quanto é que a empresa vale?

Dois milhões e qualquer coisa.

E diziam que não ias a lado nenhum.

Como seria um dia perfeito no Porto?

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