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O cool não veio sozinho para os Anjos. Trouxe preços altos e noites sem dormir

Perante preços proibitivos, moradores que construíam vida nos Anjos tiveram de abandonar o bairro nos últimos anos. Há ainda associações em risco, excesso de ruído e muito lixo.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Bairro dos Anjos
Rita Chantre | Bairro dos Anjos
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Se não foi o primeiro, esteve perto. Até à abertura do Brick, nos Anjos serviam-se pouco mais do que torradas, galões, gastronomia tradicional e copo de vinho a um euro. Há cerca de cinco anos, na esquina da Rua de Moçambique, Bairro das Novas Nações (antigo Bairro das Colónias), as pessoas chegavam a esperar na fila mais de uma hora pelo brunch. “Havia se calhar uns cinco ou seis sítios com brunch na cidade. Nos Anjos, seguramente, nenhum”, recorda Nuno Pereira, proprietário, que pegou no negócio começado por um inglês um ano antes (depois de ali ter funcionado a churrasqueira O Tijolo), no tempo em que ainda se compravam T2 na zona por 100 mil euros. Hoje, excluindo caves e fogos remediados, encontrar uma casa perto dos 300 mil euros não é o pior dos cenários. 

Nuno cresceu no Alto de São João e era aos Anjos que, na altura, se ia ao café, à noite, com os amigos. “Havia uma conotação negativa em relação a toda esta zona”, até ao Intendente, ponto proibido de passagem para muitos, por associação ao tráfico de droga e à prostituição. Com a transferência do gabinete de António Costa, em 2011, então presidente da Câmara de Lisboa, para a Avenida Almirante Reis, começou a mudança. Nos Anjos também.  

Brick, Anjos
Duarte DragoBrick, Anjos

Que o Intendente se esvaziou, entretanto, de comércio, vida nocturna, cultural e local, já sabemos (a Casa Independente, uma das últimas sobreviventes, acaba de confirmar o fecho para o final de 2026). Mais acima, nos Anjos, diminuiu a “má fama”. O bairro passou a ser conhecido internacionalmente como bom destino para trabalhadores remotos, cheio de cafés de especialidade e mesas que aceitam computadores. “No início não tínhamos abacate. Tivemos de pôr. Mas nunca alterámos o nosso espírito, o conceito. Sempre tivemos a preocupação de ser um café de bairro”, diz Nuno Pereira. O bairro é que mudou. “Outro dia fui a um espaço novo aqui perto e pedi um galão. Perguntaram: um latte?”, repara o proprietário, receando o fim da cafetaria tradicional.

Gente de passagem

Em 2022, a freguesia de Arroios tinha mais de 3000 alojamentos locais (AL) registados (não existem dados concretos sobre o bairro dos Anjos) e caracterizava-se por uma “concentração forte de AL (rácio de 13%)”, de acordo com um relatório divulgado em 2023 pela autarquia. E isso fez a diferença. “Os AL tiraram muita gente daqui. Muitos dos nossos clientes perderam as casas, grande parte na faixa entre os 30 e os 40 anos, em que já é suposto ter-se alguma estabilidade. Mas eles tiveram de recomeçar noutro lado. Uns emigraram, outros foram para Sintra, Óbidos… Em substituição disso vieram muitos AL e muitos nómadas digitais. O curioso é que estamos numa freguesia com muitos imigrantes de classe baixa, mas aqui nos Anjos o segmento é outro. Já há casas à venda por um milhão de euros”, descreve o gerente do Brick. Nesse segmento, há também “três bares de vinho com copos a 7 ou 8 euros e uma padaria caríssima”, prossegue Pedro Santos, jornalista e morador do bairro. 

Bairro das Novas Nações
Fotografia: Mariana Valle Lima

Pessoas de passagem, diz-se, não cuidam da casa, sendo este outro diagnóstico do que está a acontecer ao bairro. A abertura de novos espaços, com novos conceitos, trouxe um dinamismo inegável à zona, mas também mais motivos para querer visitá-la do que ali viver, para muitos. O ruído, o excesso de lixo e de trânsito (com destaque para a presença perturbadora de TVDE) são algumas das principais queixas. Para o jornalista que vive nos Anjos há cerca de três anos, “o bairro só piorou”. “O trânsito piorou, há menos fiscalização, e depois há uma impaciência e agressividade na estrada, a desoras, que tornam o dia-a-dia um inferno”, descreve. 

A par das buzinas e do ruído motorizado, sobressaem “turistas em altos berros” e um “abandalhamento total do espaço público”. “Nunca vi esta zona tão suja como agora. Não há uma única ilha que não tenha uma colecção de lixo à volta, portanto, ir à próxima nem sequer é uma opção”, frisa. Para culminar, “as ruas não são lavadas” ou “são limpas poucas vezes”, segundo diferentes testemunhos.  

Fiscalização a dormir

O assunto que faz girar mais queixas até ao núcleo Vizinhos de Arroios (através das redes sociais) é, de facto, a higiene urbana, dá conta Filipe Dias, representante do grupo. De seguida surgem empatados o ruído nocturno e a insegurança. “Os Anjos representam um terço da área de Arroios e dois terços dos problemas”, sintetiza o responsável, concordando com o retrato de uma mudança veloz do bairro que não deixa os moradores dormirem, sentirem-se seguros ou num espaço limpo e agradável.  

Regueirão dos Anjos, Julho de 2025
DR via Vizinhos de ArroiosRegueirão dos Anjos, Julho de 2025

Alguns estabelecimentos “foram instalados em fracções cujo uso previsto no título constitutivo da propriedade horizontal não é compatível com restauração ou bar. Estes estabelecimentos funcionam ‘a céu aberto’, emitindo música para a rua (e para dentro das casas dos vizinhos), vendendo álcool para consumo na via pública e ocupando ilegalmente o espaço público. Temos conhecimento de dezenas de residentes que, devido a esses estabelecimentos, não conseguem ficar em casa aos fins‑de‑semana; outros, pela privação de sono, desenvolveram problemas psicológicos e cardiovasculares”, retrata.

Já as causas nem sempre são fáceis de identificar. “Moro aqui há 40 anos e sempre houve problemas com o lixo, mas agudizaram-se nos últimos cinco anos. Agora, não sabemos se está relacionado com incapacidade de recolha ou de armazenamento… Há várias teorias.” Umas culpam o turismo, outras a repartição de responsabilidades entre as juntas e a Câmara. “O que sabemos é que coincide com o aumento significativo do número de estabelecimentos.” A somar a isso, a economia das entregas, carregada de embalagens, disparou durante a pandemia para não voltar atrás.

Sobre o ruído, Filipe Dias fala de um sentimento de impotência, dando o exemplo de dois bares na Almirante Reis sobre os quais há centenas de queixas, mas “nada acontece”. A estratégia actual é aumentar a pressão sobre as autoridades (se necessário, por via judicial), agora que os Vizinhos de Arroios fazem parte da Plataforma Lisboa, grupo que congrega várias associações que se batem por maior qualidade de vida na cidade.

Os despejos

No meio de tudo isto, o aumento dos preços da habitação fragilizou o tecido social. Nos Anjos, há pelo menos dois colectivos que não viram renovados os seus contratos de arrendamento: a associação Sirigaita e a Zona Franca dos Anjos. No primeiro caso, passou cerca de um ano e meio desde que se recusaram a entregar as chaves ao senhorio do 12F da Rua dos Anjos, já a entrar no Intendente. “​​O senhorio, um mega proprietário com 80 AL registados em Lisboa, um rico mencionado nos Panama Papers, diz que precisa do imóvel de volta (coitadinho) e pôs-nos um processo de despejo em cima, cujo desfecho aguardamos”, contam na sua newsletter. Desde 2018, a Sirigaita tem criado redes de apoio mútuo (com destaque para a habitação) e dado espaço à experimentação artística, a debates, concertos, apresentações e outras vivências da comunidade local. Resiste pelo espírito de missão.

Já a Zona Franca funciona há 12 anos num rés-do-chão com um simpático pátio nas traseiras, comida vegana (e cantina social), jogos, filmes, música. Perante o fim do contrato, deveriam ter saído até ao final do ano passado, mas optaram por “resistir ao fecho e à morte silenciosa”. A 18 de Setembro, convocaram uma assembleia geral, porque a par da situação do arrendamento, “a situação é crítica”. “Não temos pessoas para manter a cantina social nem nenhuma das outras actividades. Sem participação, o espaço que construímos juntes corre sério risco de desaparecer”, avisam. 

Anti-tour de luta pelas colectividades, 2024
DRAnti-tour de luta pelas colectividades, 2024

Não pelos preços mas por uma mudança de política do executivo actual, também o pequeno e informal grupo Moradores da Rua Cidade de Manchester vê a sua existência ameaçada. Como conta Carlos Sacramento, um dos fundadores, “o grupo foi criado para que a vizinhança se conhecesse”. “Há pessoas do meu prédio com quem nunca falei, até porque hoje há muita gente de passagem, que fica cá no máximo cinco anos, curiosamente o prazo dos contratos de arrendamento”, detalha. 

Iniciativa dos Moradores da Cidade de Manchester, Natal de 2023
DRIniciativa dos Moradores da Cidade de Manchester, Natal de 2023

Os vizinhos começaram em 2017 a organizar iniciativas como trocas de livros, acções de jardinagem ou cicloficinas, até que em 2021 as regras da Câmara mudaram. “Passaram a pedir-nos 300 a 400 euros por cada evento, quando antes era gratuito. Ora, nós não temos qualquer fonte de rendimento”, afirma o morador. O que aconteceu? Acabaram os eventos e a vida de rua, com consequências para o espaço público. “Nos anos em nos juntávamos, havia mais sentimento de pertença e acho que isso se notou na melhoria do espaço público, porque as pessoas sentiam-se mais responsáveis por ele”, diz o morador. 

O grupo continua a existir nas redes sociais, mas, como diz Carlos Sacramento, “ali as conversas perdem-se”, não se transformam em acções. “Veremos se no próximo mandato haverá condições para retomar.” 

Sol de muita dura 

Longe de ser uma mudança, a falta de árvores é também apontada pelos moradores como uma falha do bairro, cada vez mais sentida perante as alterações climáticas. “A Junta até instalou uns vasos com árvores nos locais onde não é possível plantar, mas depois não cuida. Muitas estão mortas e secas em vasos que servem de caixote do lixo ou cinzeiro”, revolta-se Pedro Santos, que em 2022 escreveu o manifesto “Árvores em Todas as Ruas de Lisboa”, pedindo acção ao poder público.

Jardim do Caracol da Penha, 2023
DRJardim do Caracol da Penha, 2023

A falta de sombra é também sentida por Ana Sardoeira, que apesar de viver ao lado do Jardim do Caracol da Penha, inaugurado em 2023, tem de se esforçar para ver árvores da janela de casa. “O Caracol não é forte em sombras”, lamenta, visionando um bairro cada vez mais “virado para o consumo”. 

O jardim é uma das mudanças mais recentes no bairro, mas os Anjos são “uma zona que vai mudar muito nos próximos anos”, antevê Filipa Mariano, dos Vizinhos de Arroios, apontando para a grande quantidade de vazios urbanos e prédios devolutos na freguesia. Do quarteirão da Portugália ao antigo Hospital do Desterro, passando pelo Banco de Portugal, “há muito por fazer, mas é preciso uma visão agregada”, defende a cidadã, deixando um pedido: “É importante que haja discussão e planeamento, saber que cidade se vai construir aqui.”

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