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João Rodrigues Residência - Minho
©Joana FreitasVenâncio na apanha da lampreia

Lampreias feias, vacas pequenas e abelhas mansas. Assim é feito o castiço Minho do João

A vila de Melgaço e a Branda da Aveleira serviram, no último fim-de-semana, de cenário e inspiração à segunda etapa do João Rodrigues em Residência, o projecto gastronómico e itinerante que levará o chef por 12 regiões em 12 meses.

Escrito por
Mariana Morais Pinheiro
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A lampreia é para gente rija. Não é para estômagos fracos, nem para quem fica na cama a mandriar. É para quem se levanta com a alvorada, ao primeiro canto das cotovias, quando ainda nem sequer o sol se dignou a romper a intangível curvatura da Terra. Venâncio manuseia com as mãos calejadas as armadilhas instaladas, geração após geração, nas pesqueiras ao longo do rio Minho, nesse curso acidentado, rochoso e de águas frias e furiosas, que volta e meia prega partidas ao mais experiente dos pescadores. Mas a sua ferocidade não afasta o Venâncio dos cabelos grisalhos e bigode farto que lhe devota todo o seu amor e que em troca lhe pede apenas que o rio não se esqueça dele quando ele morrer. Venâncio é uma das personagens desta história, feita de muitas outras que compõem a informação genética de uma região pulsante em gastronomia, natureza e tradições.

Mas esta é também a história que João Rodrigues começou a contar há alguns anos e que segue agora expedita pelo país, a bordo do seu ambicioso projecto João Rodrigues em Residência, um restaurante itinerante (muito mais do que isso, até) que irá percorrer 12 regiões em 12 meses. Depois de Boticas, em Trás-os-Montes, no mês de Janeiro, o chef instalou-se em Melgaço no último fim-de-semana, dias 18 e 19 de Fevereiro, bem perto da raia, lá no vaidoso Alto Minho, onde deu a conhecer, entre muitas outras coisas, a lampreia escalada, salgada e fumada durante sete dias pelas mãos hábeis de João e Dinda; ou os bons queijos de cabra da marca local Prados de Melgaço, fruto de animais que pastam felizes no monte e ouvem música enquanto descansam.

João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasAs cabrinhas da Prados de Melgaço

As personagens principais deste evento são os produtos e os produtores nacionais. Durante dois dias os holofotes estão apontados para eles. Esta é a vossa forma de os dar a conhecer, de os elogiar?

Este é um trabalho que começou muito antes, com o projecto Matéria. Em 2015 começámos a desenvolvê-lo. Ele foi ganhando forma, primeiro como um menu no restaurante [Feitoria], em 2016, e, em 2017, formalizamos que iríamos ter um projecto diferenciado e próprio e lançámos o site, mas a ideia foi sempre esta: valorizar o produto. Nós só vamos conseguir elevar o seu patamar e dar-lhe visibilidade se lhe pusermos valor em cima, ou seja, se toda a gente, ou pelo menos a grande maioria das pessoas, conhecer o trabalho que existe por trás dele. Por exemplo, quando tens um feijão e sabes de onde é que ele vem, como é que é produzido e por quem é que é produzido, então vais conseguir valorizar, senão é só mais um saco de feijão. O que nós queremos é que existam escolhas conscientes, que saibas que este produto é feito assim e que vai ser melhor para a tua saúde. Portanto, ao pormos esse valor na gastronomia, obrigatoriamente temos de pôr valor onde tudo começa, que é na origem dos produtos. E a única forma de as pessoas valorizarem é terem informação.

A vossa ideia é catalogar e informar o mundo do que temos por cá?

No início, o projecto era sobre produtos, nós queríamos pôr o foco todo nos produtos, mas, depois, quando visitas quem os faz, percebes que o produtor se torna na parte mais importante, porque o produto é o reflexo do que ele é. Se tens uma coisa afinada, feita com carinho, é porque essa pessoa é assim em relação àquele produto. O projecto ganhou um espectro mais humanista e não tanto de ser um catálogo. Queremos ser uma espécie de ode ao país, mas em relação às pessoas, porque o país são as pessoas e o que nós visitamos são coisas feitas pelo Homem, com respeito pela natureza, em consonância com as tradições, as festas, a comida, a bebida, o estar, o falar, as histórias.... Tudo isso faz parte deste imaginário que queríamos englobar num projecto só e isso só poderia ser feito de uma maneira: pôr as pessoas a viajar pelo país, fazê-las ir a sítios onde normalmente não iriam, como, por exemplo, trazê-las a uma branda – muitas nem sequer sabiam o que era uma branda, eu não sabia até visitar uma [também não sabe? Já lá vamos] –, ou a jantarem em locais fora do comum, como numas termas.

João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasAs Termas de Melgaço onde decorreu o jantar
João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasArroz de lampreia

Sábado, o primeiro dia em Melgaço, que contou ainda com a pagã Queima do Entrudo no centro da vila – com direito a fogueira viva, música e gente vestida a rigor com trajes coloridos –, terminou com um jantar a quatro mãos com o chef António Loureiro, do restaurante A Cozinha, em Guimarães, com uma estrela Michelin. Aconteceu sob a estrutura férrea e novecentista das Termas de Melgaço, um edifício histórico embelezado por vitrais coloridos, chão ladrilhado e uma imponente nascente, cuja queda da água mineralizada, gasocarbónica, bicarbonatada, cálcica/magnesiana e ferruginosa, marcava o compasso de uma refeição que mostrou que o Minho, além de afável e hospitaleiro, também consegue ser profundo e agreste.  

Primeiro veio o pão, as alheiras com e sem sangue da H2Douro, as rodelas de salpicão e as fatias de queijos Prados de Melgaço com diferentes curas. Depois, uma gulosa canja de galinha, servida com grandes nacos de frango desfiado e gemas de ovos inteiras, e douradas manchas de gordura a boiar na superfície. As lampreias pescadas por Venâncio, e por tantos outros que entre Janeiro e Abril se arriscam nestas andanças, foram servidas como prato principal, num arroz intenso que torceu narizes e apaixonou corações. A refeição, que foi harmonizada com diversos vinhos da Quinta de Soalheiro, terminou com as típicas roscas de Monção, mergulhadas numa calda de açúcar e anis, acompanhadas de bucho doce, feito com pão, ovos e açúcar, e regado com mel das abelhas Buckfast de Paulo Gonçalves, uma linhagem conhecida pela sua mansidão, higiene e produtividade. 

Servir lampreia ao jantar foi uma abordagem arriscada…

Podíamos ter optado por outras soluções, podíamos ter feito rojões, por exemplo, podíamos ter feito posta com arroz de sarrabulho, mas optámos pela lampreia porque começou agora a época e porque não podes vir ao Minho e não comer lampreia. Tinha de ser lampreia. Nós sabíamos o risco – ou se gosta ou se odeia –, mas fazer de outra forma não tinha piada, nem fazia sentido. E nós promovemos, acho eu, um primeiro encontro com a lampreia para muita gente. Umas pessoas gostaram menos, outras gostaram mais, mas quem aprecia gostou muito e, portanto, é isso que nós queremos, que mais não seja, que aquela pessoa tenha provado e experimentado e que tenha ido ver como se apanha lampreia, que tipo de animal é e o trabalho que há por trás daquilo tudo, que é o fundamental. 

Como é que se faz esta selecção de produtos e produtores?

Começou como uma necessidade profissional de conhecer e de alimentar uma ideia muito própria, uma identidade que queria para o meu trabalho, e isso obrigou-me a viajar um bocadinho pelo país todo. Um bocadinho não, bastante até, com muitas viagens falhadas. Muitas vezes tinha 15, 20 produtores e, no fim, ficavam cinco, porque olhávamos muito para o método de produção, para a pessoa, para a paixão que ela punha na sua produção, para o saber que possuía e para a forma como se entregava. Tudo isso contava muito. Hoje em dia temos quase 120 produtores e já é um projecto muito mais ambivalente que toca artesanato, outros projectos que achamos interessantes e eventos. É um projecto que é feito de partilha, feito a pensar numa comunidade. 

E a comunidade aderiu em peso: os bilhetes esgotaram em poucas horas. Quem é que se tem sentado à tua mesa?

Temos tido gente de todo o país e acho bom desmistificar que Portugal não é um país grande. É fácil viajar no nosso país (ok, não vou dizer que é barato), mas temos todas as condições. Chegar aqui, vindos de Lisboa, demoramos quatro horas e meia, cinco no máximo, e estamos no ponto mais a norte de Portugal. Precisamos de quebrar estas barreiras mentais porque o país precisa disso, está a ficar altamente desertificado no seu interior, com populações envelhecidas. E há uma grande questão: quem vai continuar tudo isto que nós adoramos, que vemos e fotografamos? Quem vai perpetuar isto? Se não pusermos interesse, se não pusermos valor… 

Poderão ser as novas gerações? Tens visto isso a acontecer?

Tenho visto novas gerações a pegar nestes projectos, sim. Muitas, mas de uma forma diferente e isso não é mau, porque se por um lado o que é verdadeiramente tradicional e se quer manter assim, com um proteccionismo tão grande que toda a gente quer cristalizar, por outro lado vemos que todas as tradições, em algum momento da História, sofreram inovações. Elas já não são o que eram há 100, 150 anos, são ligeiramente adaptadas. E isto obriga a uma reflexão. Quando percebermos que também é bom e que pode haver, com respeito, pesquisa e catalogação, alguém a fazer outra coisa diferente mas inspirada nestas tradições, então estamos no caminho que vai ajudar a perpetuar o que existe e não a cristalizá-lo. Cristalizando as coisas morrem.

João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasJoão Araújo, o pastor
João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasAs abelhas Buckfast de Paulo Gonçalves

João Araújo é um desses jovens. Debaixo das suas botas de pastor derretem os cristais de gelo que durante a noite cobriram os pastos com um manto esbranquiçado. É nas terras altas da Branda da Aveleira, sob o olhar feérico de um dos mais importantes vales glaciares a nível nacional, com quase um milhão de anos, que as suas vacas da raça Cachena, com Denominação de Origem Protegida e umas das mais pequenas do mundo, pastam tranquilamente partilhando as serras com esporádicos garranos selvagens. Sobre os ombros, o pastor traz a crossa de palha que o protege das intempéries e relembra os tempos em que a transumância era um acto sagrado por aqui. Nos meses mais quentes, as famílias subiam às tais brandas, que são aldeias em altitude, com o gado, as mobílias e outros pertences, desocupando os terrenos baixos ou Inverneiras, para que a plantação de milho pudesse acontecer. 

O rio Vez vai acompanhando o percurso exigente de mais de duas horas que leva os participantes por montes e encostas, que os faz percorrer caminhos rurais e atravessar aldeias graníticas que o tempo não conseguiu engolir, como o caso da Branda da Aveleira, que num esforço conjunto entre a Junta de Freguesia de Gave e o Município de Melgaço, foi recuperada e tem hoje algumas casas preparadas para receber turismo rural. É de lá perto, também, que se consegue vislumbrar a mais alta vinha de Alvarinho do país, plantada a 1100 metros de altitude, numa experiência da Quinta de Soalheiro, pela qual ainda se esperam os frutos.

A fome começa a apertar e um reconfortante caldo de saramagos com toucinho, devorado sem pudor, e um naco de broa morna, cozinhada no forno comunitário, esperam os resistentes junto ao Brandeiro, o restaurante típico onde aconteceu o almoço de domingo. Teve início com um tártaro de vaca Cachena e batata frita palha que aterrou sobre as mesas em doses para partilhar. Foi seguido de um prato que misturou polvo, pimentão e miso, com um toque de mel das abelhas Buckfast e, logo depois, por uma salada de couve-flor assada com grão, forte no sabor a cominhos, especiaria tão comum nos preparados minhotos. Nos pratos principais brilhou o bacalhau com ovo e cebola e, claro, o saboroso e muito aromático cabrito assado em forno a lenha. Tudo regado pelos vinhos Quintas de Melgaço. O João Rodrigues em Residência no Minho terminou doce, com um pão-de-ló com limão e doce de ovos, e com uma sala cheia de bocas conversadoras e estômagos felizes, alheios ao prodigioso trabalho que implica um evento com estas dimensões.

João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasO tártaro de vaca Cachena
João Rodrigues em Residência - Minho
©Joana FreitasO cabrito assado em forno a lenha

Quais são os desafios de organizar um evento gastronómico itinerante?

Propusemo-nos a fazer um projecto que não tivesse quase recursos, ou seja, a ideia foi fazer um projecto caseiro, que fosse crescendo de residência para residência, em que uns fossem alimentando os outros. Felizmente, temos parceiros que se foram juntando a nós, como a Cutipol ou a Studioneves, e muita gente que se foi associando ao projecto porque o acha interessante. Somos poucos, mas alguém traz um fogão e se não há fogão, arranjamos um sítio e cozinhamos com fogo. A ideia é haver uma grande dose de improviso. Temos de andar com a casa às costas, é certo, mas isso dá uma sensação boa de não sentir que tudo nos é dado ou que herdamos qualquer coisa muito facilmente. Tem esse lado de improviso que nos faz sentir vivos. Foram muitos anos num sítio com tudo muito direitinho, com equipas grandes e tudo a funcionar muito certinho e agora acho este lado fantástico [risos].

E o que podemos esperar da próxima paragem?

Vai ser no Douro. Ainda não se sabe muito, mas posso dizer que vai ser na Quinta do Seixo, no final de Março, nos dias 25 e 26, com alguém que me é muito querido, que é o Vasco Coelho Santos. Não vou adiantar muito o que vamos fazer, mas vamos ter algumas coisas diferentes. Vamos estar muito perto de uma estação de comboios emblemática, a do Pinhão; e fará sentido os Portos terem uma predominância neste evento, como uma prova de vinhos, por exemplo. Como de costume, o dia mais tradicional será entregue ao Vasco. Uma vez que os convidados são os representantes da região, farão eles o prato mais tradicional. Nós teremos uma abordagem muito própria, a dar um olá ao Porto. Teremos um cheirinho mais de mar e iremos dar uma piscadela de olho muito forte a toda aquela zona do Porto e Matosinhos. Um cozinheiro de Lisboa a dar um olá ao Porto, vamos ver como é que a coisa sai [risos]. 

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