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Fotografia: João Saramago

Miguel Carvalho: "O PREC dava vários filmes. E tem muito de Fellini"

Miguel Carvalho guia-nos pelo seu novo livro, 'Quando Portugal Ardeu', sobre o que se seguiu ao 25 de Novembro de 1974

Escrito por
Jorge Manuel Lopes
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Miguel Carvalho tinha quatro anos em 1974. Quatro décadas depois afirma que é hora de fazer luz sobre as acções das redes bombistas de extrema direita que se seguiram ao PREC, período tido como de pacificação. Assim surge Quando Portugal Ardeu, publicado este mês pela Oficina do Livro, um trabalho de investigação do grande repórter da Visão.

Precisaste de um ano para dar corpo ao Quando Portugal Ardeu.

Um ano para escrever. Mais coisa menos coisa. Com sucessivos adiamentos. A editora teve uma paciência fantástica. Mas é um livro que trazia em mim há uns 20 anos. Além de ter levado com as histórias que os testemunhos familiares me foram passando, sou um maluco dos papéis. Tenho uma casa tipo farrapeiro. Os meus arquivos são quase todos em papel e sobre esta temática do PREC, da rede bombista, dos acontecimentos mais controversos daquela época, fui acumulando material nas últimas duas décadas. Herdei muita coisa familiar, livros, mas sempre que via uma história num jornal, ou ia à biblioteca consultar não sei o quê, “eh pá isto é para aquele dossiê [risos]”.

Aguardas que cheguem àquele ponto crítico, como aconteceu com este.

Sim, o ponto de rebuçado. Tenho, por exemplo, um arquivo sobre comboios e linhas férreas abandonadas. Nunca escrevi nada sobre comboios mas vou coleccionando tudo. São coisas que me interessam e que têm sido úteis para muitos trabalhos que faço. Vou acumulando [dossiês] na esperança de um dia deixar aquilo de outra maneira, num formato livro.

Ao ler o livro, não é difícil pensar nalguns paralelismos com o presente. Há hoje organizações inquietas com a hipótese de um governo de esquerda dar certo?

Lemos amiúde que a Geringonça está a ser analisada a vários níveis, para perceber como foi possível uma base mínima de entendimento destas forças de esquerda. O clique que me fez achar que era o timing certo para escrever este livro foi precisamente o nascimento da Geringonça. Não pela Geringonça em si, mas pelo que vi escrito sobre ela numa altura em que o governo de Passos ainda nem tinha caído, quando se preparava este entendimento.

O que leste soou-te familiar?

Fez-me lembrar aqueles tempos do PREC. Sobretudo a argumentação primária em relação à constituição de uma eventual maioria de esquerda. Que, como se viu, era perfeitamente legal. E mesmo assim escreveram-se autenticas barbaridades que podiam ser decalcadas daquele período, com argumentário idêntico. Não porque ache que esta maioria parlamentar de esquerda é a solução para todos os males. O que me indignou foi o facto de se considerar que isto nem devia ter o direito de existir. Que é exactamente o mesmo tipo de argumentação que foi usado naquela altura, o que é facilmente comprovável e que serviu para lançar o fósforo. Vi manifestações de rua, convocadas por gente da nossa geração, alguns até mais novos, “Ai, ai, ai, que vem aí o comunismo!” A falta de cultura democrática, de conhecimento constitucional, pôs-me a pensar: “Se calhar é altura de explicar um bocadinho como foram aqueles tempos, sobretudo o que normalmente não vem no mapa destas coisas; recuperá-los e mostrar que a direita nunca foi tão ordeira, civilizada e culta como pretende fazer crer.”

O que mudou desde o PREC foi o poder de mobilização da Igreja.

A Igreja foi parte activa, cúmplice, de toda a estratégia da rede bombista de extrema-direita, e foi fundamental na agitação popular. Que envolveu não só os partidos mais à direita, com diferentes graus de cumplicidade, mas também gente do Partido Socialista que achava que valia tudo na guerra contra o PCP. Mas houve um homem que já tinha enfrentado com muita coragem o salazarismo, e no Verão Quente e que para lá disso teve uma posição que só dignifica a Igreja: o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. Em várias sessões públicas, artigos de jornal e entrevistas foi bastante crítico sobre a forma como alguns sectores da instituição, completamente retrógrados, estavam a assumir um papel contrário aos interesses da própria Igreja e do país. O capitão Ferreira da Silva, o polícia militar que coordenou as investigações à rede bombista, confirma no livro uma coisa que muitos julgavam ser lenda: à saída de uma reunião em Braga para definir estratégias da rede bombista, o famoso Cónego Melo virou-se para eles e disse: “Deus abençoe as vossas mãos”.

Dos actos e declarações fica a ideia de que, entre 1974 e 76, o acesso a armas no país era fácil.

Quando se iniciam as investigações à rede bombista, a Polícia Judiciária elabora um relatório, a que tive acesso, em que se fala dos meios necessários para combater o terrorismo de direita. E quando se faz o diagnóstico de como as coisas estão, sobretudo de Coimbra para cima, o que se lê é aterrador: as armas estão à solta. É fácil ir buscá-las aos quartéis, e isto aplica-se a todas as forças políticas. Era fácil trazê-las de Espanha, porque a rede bombista teve muita colaboração da polícia de lá, e os seus governantes, de forma geral, fechavam os olhos. Toda a gente arranjava armas em todo o lado. À vista de 2017, e fazendo jus à ideia de Verão Quente, parece que, no período coberto pelo livro, o país passou por uma insolação colectiva. O Verão Quente foi o que foi, um tempo em que se cometeram todos os excessos, mas o período de maior violência é a seguir ao 25 de Novembro. A data que muitos consideram simbólica para a pacificação do país não o é de todo. Os atentados mortais, absolutamente direccionados, acontecem em 1976: Padre Max, Rosinda Teixeira em São Martinho do Campo, e os atentados à embaixada de Cuba. Mortes, há depois do 25 de Novembro.

O 25 de Novembro é uma data conveniente?

É uma data bastante elástica, de muitas conveniências, que ainda hoje dá para se fazer uma série de narrativas sobre o antes e o depois que devem muito à falta de memória e de escrutínio sobre aqueles tempos.

Quando Portugal Ardeu começa com as histórias de duas das primeiras mortes do pós-25 de Abril de 1974. A descrição do funeral de uma delas, Vítor Bernardes, baleado na confusão de uma manifestação anticolonial no Rossio, em Lisboa, pinta um quadro de absurdo total, incontáveis correntes de esquerda a querer reclamar a vítima como seu mártir particular, a viúva a desmaiar. Há ali uma cena felliniana a pedir para ser rodada.

O PREC dava vários filmes. E tem muito de Fellini. Nas horas desse funeral convergiram vários absurdos da época: os tipos que querem disputar o morto; algumas organizações de esquerda que o querem chamar a si; o MDP[/CDE, no qual Bernardes era filiado], que se compromete a pagar o funeral e depois não paga; um advogado [Dimas Gomes] que não tem nada a ver com isto e até é um tipo, vá lá, de centro-direita, e que assume aquela causa. Aquela época teve todos os excessos possíveis e imagináveis, mas que também (se calhar, a esta distância, é fácil dizer isto), até determinada fronteira, são compreensíveis para um país que tinha vivido décadas completamente amarfanhado, na sombra, muitas vezes sem sequer se imaginar o dia seguinte. Os excessos que às vezes são julgados de uma maneira muito peremptória e sem zonas cinzentas…

E paternalista?

Também. Não é que se desculpe, mas tem que haver alguma compreensão para aquele caudal de coisas. O Sérgio Godinho tem uma frase, “A sede de uma espera só se estanca na corrente”. Foi o que aconteceu. O período abordado no livro é, de certa forma, uma resposta à questão “o que vamos fazer com esta liberdade?”

Mas era natural. Quem diz isto é um gajo que no 25 de Abril tinha quatro anos. Vi isso também na minha própria família: tive tios PS a ameaçar o meu pai comunista com catanas e cintos. O que passa a fronteira é tudo o que resulta, em parte, em algumas histórias que descrevo no livro. Que originaram atentados bombistas. Que tiveram um objectivo muito direccionado e planeado. Esse é que é o lado mais complicado.

Por falar em filmes: o papel do [PCTP] MRPP em todo o período pós-revolução é das coisas mais fascinantes porque é complexo. A tua investigação foi suficiente para perceberes para que serviu essa organização?

Falta um livro de grande fôlego sobre o MRPP. Depois de muitas leituras e conversas, fico com a ideia que o Saldanha Sanches tinha razão. Ou seja, aquilo serviu para muitos interesses e não propriamente para servir a classe operária. Acho que há um MRPP antes do 25 de Abril, que teve o seu papel sobretudo ao nível estudantil, mas depois da revolução creio que foi manietado por diversos interesses, alguns deles completamente contrários ao seu ideário. Quais os objectivos dos dirigentes e o propósito daquilo, bem como as origens do dinheiro do partido, que era muito, eram coisas que já na época do Saldanha Sanches levantam bastantes dúvidas. Há várias pessoas neste livro que levantam a possibilidade (reforçada por outros depoimentos que recupero de leituras de jornais e de outras obras) de identificar o MRPP (e não só, mas sobretudo o MRPP) como parte de uma estratégia que a CIA seguia um pouco por todo o mundo (como no Chile), de insuflar algumas organizações de extrema esquerda para, através delas, travar o avanço do que consideravam o comunismo. Sendo que o “comunismo”, neste caso, era uma coisa muito vasta.

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