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Alphonse Allais. Chegou o mestre do humor francês (e traz café instantâneo)

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Victor Hugo, o pato Ferdinand, Deus, um escafandrista com coração de ouro, Baudelaire, um papagaio e o homem que julga ter inventado o guarda-chuva são alguns dos protagonistas da colecção de contos que dá a conhecer em Portugal Alphonse Allais, o francês a quem se atribui a invenção do café instantâneo, em 1881.

O sobrestimadísimo John Cage costuma ser enaltecido por ter concebido, em 1952, a peça 4’33, que consiste em 4’33 de silêncio. Todavia, Alphonse Allais precedeu-o em 55 anos, com Marcha para as exéquias de um grande surdo, que consiste em 24 compassos de silêncio. É o análogo sonoro do seu quadro Primeira comunhão de jovens raparigas cloróticas na neve, de 1883, que se resume a uma folha de papel em branco. Poderiam multiplicar-se os exemplos de obras revolucionárias e correntes estéticas de que Allais pode ser visto como precursor: arte conceptual, dadaísmo, surrealismo, humor nonsense, teatro do absurdo. E, todavia, é tão pouco conhecido que esta selecção de 64 dos cerca de mil contos curtos e monólogos que produziu é o seu primeiro livro publicado em Portugal.

Alphonse Allais (1854-1905) nasceu em Honfleur, na Normandia, a poucos metros da casa onde, 12 anos depois, nasceria Erik Satie. O destino encarregar-se-ia de juntar estas almas irmãs, algumas décadas depois, no cabaret Le Chat Noir, onde, inevitavelmente, se tornaram amigos (Allais, que tinha um pulsão irresistível por trocadilhos e jogos de palavras, rebaptizou o pianista e compositor como Ésotérik Satie). O humor de Allais tem afinidades com o de Satie e com o de Félix Fénéon (de cujo Notícias em três linhas, editado também pela Exclamação, se deu conta nestas páginas), e nada escapa à sua acção corrosiva: os valores burgueses, as instituições do Estado, a religião, as convenções literárias, as luminárias do meio intelectual, o senso comum e até o próprio autor (que se intromete frequentemente nos textos).

Alguns contos entram no domínio do puro delírio, como o que dá voz às reclamações do mercúrio dos termómetros quanto às condições de trabalho (“Legítima reclamação”), o que advoga a deslocação da linha do Equador para os pólos como forma de minorar o frio e facilitar a navegação nas altas latitudes (“Algumas reformas cósmicas”) ou o que propõe dar nova vida à Torre Eiffel como fonte de água ferruginosa.

Outros dir-se-iam escritas hoje: é o caso de “Não se deve fazer mal, mínimo que seja, aos micróbios” e “Vegetarianismo integral”, que troça de vegans e de gente com amor desmedido por animais não-humanos; de “Sim, decididamente, reformemos a ortografia”, que deveria ser lido por todos os entusiastas do AO90; de “A agonia do papel”, em que prevê, em registo sarcástico, o advento do livro electrónico; ou de “Finis Britaniae”, em que as Ilhas Britânicas, tornadas mais leves pela extracção do carvão no seu subsolo, começam a flutuar e partem à deriva, afastando-se da Europa. Um dos momentos culminantes está em “A fénix celular”, uma entusiástica apologia do “seguro contra os riscos de detenção penal”, que se recomenda “não só ao ladrão profissional, mas também a todas as pessoas que possam ser objecto de mandado de captura. Neste âmbito, o seguro é tão indispensável ao deputado, ao senador e ao ministro como ao assaltante e aventureiro vulgares”. Allais prevê que nas apólices que cubram delitos de natureza política, “o prémio seria aumentado, uma vez que estes sinistros se vêm tornando mais frequentes a cada dia que passa”.

Olhando para a lista de arguidos das operações Marquês, Face Oculta, Furacão, Monte Branco e Fizz e dos casos da Sociedade Lusa de Negócios e BES/GES, conclui-se que não faltarão clientes em Portugal, embora o nosso país-irmão, onde 60% dos deputados e senadores têm processos judiciais a correr contra si, se afigure mercado ainda mais promissor.

Alphonse Allais

63 histórias de humor e 1 poema melancólico

(Exclamação)

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