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'As Últimas Testemunhas': um livro imperdível da Nobel Svetlana Alexievich

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A guerra é muito diferente aos olhos de quem tem oito anos de idade e nada sabe sobre bombas e crueldade. É esse o ponto de vista de ‘As Últimas Testemunhas’, de Svetlana Alexievich, um livro infalível a combater a perda de memória e a manipulação do passado.

A afirmação de George Santayana de que “aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo” tem sido citada tão amiúde que se tornou num lugar comum e perdeu parte do impacto, mas não deixa de ser verdadeira. A ascensão do partido AfD (Alternativa para a Alemanha) nas últimas eleições federais alemãs oferece um clamoroso exemplo dos perigos da perda de memória histórica: o AfD perfilha convicções que o aproximam do neonazismo, mas fá-lo envergando fatos e tailleurs de bom corte, em vez de usar Doc Martens e cabeça rapada, pelo que conseguiu cativar eleitorado culto e bem instalado na vida e que receia o afluxo excessivo de imigrantes. Há quem se tenha insurgido contra a “demonização” do AfD, invocando que nenhum dos seus ideais e valores, quando tomado isoladamente, os vincula inequivocamente à extrema-direita – até poderia admitir-se que sim, mas quando tomados em conjunto (e isso é que conta), é inequivocamente para aí que apontam. Na verdade, bastaria uma das reivindicações do AfD para o colar ao neonazismo: o seu líder Alexander Gauland afirma que já é altura de os alemães poderem “sentir-se orgulhosos dos feitos dos soldados alemães nas duas guerras mundiais”.

O sr. Gauland e os seus apaniguados sofrerão talvez de perda de memória ou de memória selectiva, pelo que é recomendável que tomem muito fósforo e leiam As Últimas Testemunhas, onde, a cada página, nos deparamos com os “feitos” dos soldados germânicos na Frente Leste. Como este, relatado por Lyuba Aleksandrovich (11 anos): “Os alemães andaram pelas casas... Reuniram as pessoas cujos filhos se tornaram partisans... E cortaram-lhes as cabeças no meio da aldeia... Ordenaram- -nos: olhem. Numa casa em que não encontraram ninguém, apanharam o gato e enforcaram- -no. Ele pendia da corda como uma criancinha”. Ou este: “Os alemães abateram-nas rapidamente e preparam-se para se irem embora. Um alemão de motociclo inverte a marcha e faz a ronda pelos mortos. Tem algo de pesado na mão [...] Sem descer do motociclo, em marcha lenta, racha as cabeças a todos [...] Nunca antes tinha ouvido o estalar dos osso humanos. Recordo que estalavam como as abóboras maduras quando o pai as rachava com um machado e eu depois tirava as sementes” (Yakov Kolodinsky, sete anos).

Lyuba Aleksandrovich conclui o seu testemunho exprimindo o desejo de querer esquecer tudo, o que é compreensível face àquilo por que passou, mas o nosso dever colectivo é nunca permitir que estes factos sejam apagados. E poucos têm feito mais pela preservação da memória do lado mais negro do século XX do que a bielorrussa Svetlana Alexievich, que se define como “uma historiadora da alma”. Se em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher deu voz às 800.000 mulheres que estiveram na frente de combate e foram rasuradas da história oficial soviética na II Guerra Mundial, em As Últimas Testemunhas Alexievich entrevistou, quatro décadas após os eventos, os que eram ainda crianças quando as tropas alemãs invadiram a URSS a 22 Junho de 1941 e foram apanhados no vórtice de fogo, aço e barbárie: “Vi o que não deve ser visto... O que um ser humano não pode ver.” (Yura Karpovich, oito anos).

As evocações das testemunhas são, inevitavelmente, menos elaboradas do que as de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, mas são ainda mais pungentes, pois eram demasiado novas e inocentes para apreender a monstruosidade. Por muito que se tenha lido sobre a guerra na Frente Leste, não é possível sair incólume deste livro.

As Últimas Testemunhas

Elsinore

320 pp

18,79€

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