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Han Kang. Os "Atos humanos" e as memórias que não saram

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Um livro povoado de recordações tão terríveis que ficam “gravadas no interior das minhas pálpebras. Num lugar onde não consigo chegar. De onde nunca poderei apagá-las”. Advertimos que ‘Atos humanos’ poderá ficar indelevelmente impresso na mente do leitor.

As notícias de barbaridades, arbitrariedades e ameaças que nos chegam regularmente da Coreia do Norte fazem- nos esquecer que a hoje democrática Coreia do Sul também viveu sob um regime autoritário entre 1972 e 1987, primeiro com Park Chung-hee (que já estava no poder desde 1961) e, após o assassinato deste, em Outubro de 1979, com o general Chun Doo-hwan, que se aproveitou da turbulência política para fazer um golpe de Estado em Dezembro desse ano. Em Maio de 1980, de forma a consolidar o poder, Chun decretou a lei marcial, invocando o pretexto da infiltração de agentes comunistas norte- -coreanos. A intensificação do autoritarismo levou à eclosão de movimentos de protesto na cidade de Gwangju, que se iniciaram entre os estudantes e ganharam adesão da população. Chun respondeu ordenando aos soldados que disparassem a matar contra manifestações pacíficas, o que levou membros do Movimento de Democratização de Gwangju a assaltar esquadras de polícia e quartéis para se armarem. De nada lhes valeu, pois a revolta foi rápida e brutalmente sufocada – do lado dos revoltosos registaram-se 600 mortos e dezenas de milhares foram presos, torturados e enviados para campos de reeducação.

É dessa repressão que nos fala este romance polifónico a sete vozes – cinco revoltosos (cujas histórias se cruzam), a mãe de um deles e a própria autora, Han Kang, que intervém no epílogo. Han não dá qualquer traço de humanidade às forças repressoras – são apenas uma máquina de matar e torturar, sem rosto – mas o relato que faz do sofrimento físico e espiritual das vítimas – adolescentes ou jovens adultos à data dos eventos – é de uma pungência extraordinária e mescla a intensa ternura (sem nunca deslizar para o sentimentalismo) com o detalhe excruciante dos corpos rasgados pelas balas e inchados pela putrefacção (um dos relatos é feito por um morto a partir de uma pilha de cadáveres).

Atos humanos é um livro que, ao desvelar o íntimo de seis pessoas empurradas para situações extremas, se questiona sobre a nossa natureza essencial, sobre o que há em nós de intrinsecamente humano e espiritual e o que é apenas animal e físico. Interroga-se uma das personagens: “Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser reduzido a um insecto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade [...]?”. E como prosseguir com a vida quando as memórias do horror, “em vez de se esbaterem com a passagem do tempo [...] [se tornam] a única coisa que sobra quando tudo o resto se corrói”? Atos humanos tem afinidades – na atmosfera claustrofóbica, na sensibilidade em carne viva, na ausência de esperança – com os romances de Herta Müller sobre a vida sob o regime de Ceausescu, mas é indiscutível que Han Kang possui uma voz dotada de individualidade e de um sombrio poder encantatório.

Atos Humanos *****

Han Kang

D. Quixote

14,90€

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