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Holocausto? Isso não era do meu departamento

Escrito por
João Morales
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Uma secretária do Ministro da Propaganda nazi afirmou até à sua morte (com 106 anos) que desconhecia a barbárie da Solução Final. Tentámos descortinar se era amnésia ou o cúmulo da distracção e demos por nós em 2017.

Não deixa de ser simbólico que uma secretária de Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda do regime nazi, tenha morrido no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, a 27 de Janeiro deste ano. Tinha 106 anos de idade. Este livro recolhe um relato escasso e despojado sobre o seu percurso e ascensão na estrutura do Estado alemão, antes e durante a II Guerra Mundial. E essa escassez de informações, emoções ou recordações também é fundamental para uma leitura ampla deste livro.

Brunhilde Pomsel nasceu em 1911, filha de um decorador. Os tempos difíceis moldaram personalidades áridas: “A obediência estava integrada na vida familiar; com amor e compreensão não se conseguia grande coisa. Obedecer e algumas artimanhas, mentiras e passar a culpa para outro, tudo isso fazia parte”.

O maior impacto deste livro – concebido com os depoimentos gravados em vídeo concedidos pela própria, e aqui reunidos pelo jornalista e especialista em Política Internacional Thore D. Hansen – é o constante (alegado) alheamento de Pomsel sobre tudo o que se passava. Apesar de trabalhar como secretária junto de uma das figuras gradas da hierarquia de Hitler, nada viu, nada ouviu, de nada desconfiava. Mesmo com os alertas que a cronologia maquiavélica ia deixando: “Todos pensam que sabíamos de tudo, de tudo. Não sabíamos de nada. Tudo foi feito em segredo e funcionou (…) Até que, em Novembro de 1938, aconteceu aquela história horrível, a Noite de Cristal.” Pomsel mostra tal distanciamento que chega a ser quase inverosímil: “Nunca vi um só transporte de judeus. Supostamente, os camiões carregados de judeus percorreram as ruas de Berlim, e não quero de forma alguma contestar isso, mas eu nunca os vi”.

O seu primeiro emprego foi com um advogado judeu. A estenografia foi a alavanca inicial para a carreira de secretária, bem como o encontro com Wulf Bley, um antigo oficial da Força Aérea, perfeitamente integrado no aparelho Nacional-Socialista em ascensão na década de 30.

Na parte final do livro, Hansen ensaia um paralelismo entre os discursos populistas que acondicionaram o ovo da serpente nazi e os dias de hoje, entre focos de renascimento ditatorial na Europa e um Presidente nos EUA que não contribui para a acalmia generalizada. Uma mistura entre “radicalização, num dos lados, e do outro, ignorância e desinteresse políticos”, sintetiza. No passado dia 24 de Setembro, terminadas as eleições na Alemanha, o líder do AfD, partido de evidente simpatia xenófoba (e terceiro mais votado, ingressando no Parlamento com 13,5% dos votos) assegurou defender “os pensamentos das pessoas comuns”. Onde é que nós já ouvimos isto?

É a própria Brunhilde Pomsel quem lança um alerta. “Quando nos sentamos em frente da televisão, aí já pensamos: mas não é possível o que se está a passar neste momento. Mas é possível. E será possível daqui a cem anos, não apenas cem anos, mas enquanto existir este globo terrestre em que vivemos. Faz parte da natureza humana”.

Uma Vida Alemã (****)

Brunhilde Pomsel e Thore D. Hansen

Objectiva

224 pp

17,50€

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