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Mezze: uma casa síria, com certeza

Escrito por
Catarina Moura
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Enquanto uma data de jornalistas estavam de volta da mesa, já no fim da apresentação de imprensa, já os petiscos todos provados, uma miúda com uns seis anos foi às prateleiras do fundo do restaurante, pegou num livro e pôs-se a ouvir a mãe, uma das cozinheiras do novo restaurante no Mercado de Arroios, a ler-lhe a história. “Era mesmo isto”, comentou Francisca Gorjão Henriques, meio surpresa como a cena. “Isto ainda não tinha acontecido porque só pusemos ali os livros hoje”, explica a menos de uma semana da inauguração, “mas a ideia era que tivessem aqui uns quantos livros para levar para casa e ir lendo”.

Quando se entra na pequena sala do Mezze, que abre terça-feira, 19 de setembro, a parede de frente para a cozinha diz casa: umas quantas ilustrações de João Catarino, jarros grandes e coloridos cheios de pickles, flores e livros de todos os tipos – infantis, ensaio, poesia, romance – todos em árabe, que livros é daquelas coisas que não se põe na mala para fugir à guerra, continua Francisca. A ideia era ter ali uma biblioteca que não fosse decoração para quem se senta às mesas, mas sim para quem trabalha no restaurante.

Não há separação entre a cozinha e a sala
©Francisco Santos

O Mezze nasceu pela Pão a Pão - Associação para a Integração de Refugiados do Médio Oriente, fundada por Francisca Gorjão Henriques, Rita Melo, Nuno Mesquita e Alaa Alhariri, uma estudante síria de arquitectura ao abrigo da Plataforma de Assistência a Estudantes Sírios de Jorge Sampaio. “Em finais de Março começámos a falar desta ideia [do restaurante] e foi tão entusiasticamente recebida que percebemos, ‘ok, não há volta a dar, estamos num ponto em que isto tem de avançar’”, relembra Francisca, que nessa altura era jornalista no Público. Agora está a 100 por cento na Pão a Pão, até porque o Mezze não será o seu único foco. “A associação gere o restaurante, até porque o projecto não é só isto, há ainda os workshops que vamos fazer porque são momentos fundamentais para as pessoas se aproximarem e conhecerem melhor. Os workshops, até mais do que na azáfama da cozinha, vão permitir essa aproximação – vão ser de comida, música, dança, escrita. Por que o que nós queremos é uma integração plena, as pessoas sentem-se em casa quando partilham vários aspectos da sua identidade”, continua Francisca.

À volta da grande mesa corrida, são Alaa e Rafat que traduzem e explicam tudo o que se come por ali e foi cozinhado com o apoio do chef Luís Barradas. Rafat chegou a Lisboa há um ano e oito meses, depois de passar anos em trânsito para tentar chegar à Europa; aterrou em Lisboa com parte da família e dedicou-se entretanto a aprender português. “Já sei as perguntas dos jornalistas todas, já sei a história de toda a gente”, conta-nos uns dias depois da abertura, já cansado de tanta tradução. Vai estar no serviço de mesa e está ligeiramente assustado com a quantidade de pratos no menu – muita coisa para decorar e para explicar em português, toda a gente vai querer saber o que é o quê.

O humus do Mezze
©Francisco Santos

Neste restaurante onde trabalham 12 pessoas (duas delas portuguesas, embora nenhuma delas a cozinhar) o hummus (4€) é uma escolha óbvia e é para ser comido com saj, um dos pães sírios que Yasser, de 20 e poucos anos, faz desde os 14. Qualquer pessoa naquele país faz pão, mas nem toda a gente o faz de forma tão consistente, sempre com a mesma forma e a mesma espessura, numa placa circular de metal, posta por cima do lume. Dá-lhe a forma com umas palmadas no ar, pousa-a em cima de uma bola pano que o ajuda a deitar a massa para cima da chapa quente, como mostrou no dia da inauguração do restaurante, na sexta-feira, dia 15, quando se abriram as portas do Mezze para o mercado e se instalou a Síria por todo o lado, com danças, músicas, tatuagens de henna, e nomes portugueses traduzidos para árabe.

O pão que deu origem a tudo – era aquilo de que Alaa mais sentia saudades nos primeiros tempos em Portugal e foi o alimento básico que deu nome à associação – também serve de colher para acompanhar um baba ganoush (4€) ou para fazer uma espécie de sanduíche de falafel. Yasser também toma conta da massa das fatayers (1,50€), uma espécie de empadas que podem ser recheadas com carne ou vegetarianas e que se comem muito bem ao final do dia, com uma cerveja ou um copo de vinho. O álcool foi uma das coisas em que foi preciso pensar duas vezes – ter ou não ter, num restaurante em que a presença da religião muçulmana é forte, interrogou-se a equipa. “Da parte deles houve essa interrogação  precisamos mesmo? Por outro lado o vinho é essencial na refeição portuguesa, e portanto achámos que seria possível conjugar as duas coisas”, explica Francisca. Já com a carne, manteve-se a exigência de só se cozinhar carne halal neste espaço em que uma refeição promete ficar entre os 20 e os 25 euros.

O pão saj usa-se como uma colher: corta-se um pedaço e com a mão pega-se num pouco de humus, por exemplo
©Manuel Manso

É assim, por exemplo, com as espetadas de borrego que acompanham o kabseh, um arroz amarelo feito com gengibre ralado, pimento, passas, curcuma, caril, paprica e pimenta preta. Ou com o kibbeh (1,50€), uma espécie de croquete de borrego com bulgur e nozes. Com ar de snack há ainda os yalangis, uns rolinhos de folha de videira originais da Turquia, diz Alaa, e que na Síria são mais ácidos e rijos, como no Mezze. A palavra que dá nome a este rolinho quer dizer mentiroso: deveria ter carne lá dentro, mas não tem.

Esta grande mesa corrida do Médio Oriente, que tem umas quantas mesas para dois a ladeá-la, os vegetarianos vão dar-se muito bem. A mujadara é um bulgur de lentilhas, polvilhado com cebola frita praticamente doce e que é tradicionalmente alimento para uma refeição, acompanhada de uma colherada de iogurte, explica-nos Shiraz, uma das cozinheiras. Vivia em Alepo onde estava em casa a tomar conta da família, como é habitual no caso das mulheres. No Mezze está a conhecer o que é a rotina do trabalho e já não quer outra coisa. “Gosto de ver a cara das pessoas quando estão a provar uma coisa diferente”, conta-nos, depois de enumerar todas as especiarias que entram no kabseh.

O kabseh é um arroz feito com especiarias e aqui acompanhado de borrego
©Manuel Manso

Há umas quantas sobremesas que envolvem pistáchio e água de rosas e são coisas que se comem bem a meio da tarde, diz Alaa apresentando-nos o mundo doce dos snacks do Médio Oriente. Uma delas são as baklavas (2€), difíceis e caras de fazer – o recheio é de pistáchios, que por si só não são baratos, e a massa que os enrola é uma espécie de massa folhada, com a dificuldade de ser feita folha a folha. É Fátima, a cozinheira experiente e mãe de Rafat, que as faz. 

No Mercado de Arroios, este é o espaço mais minimalista que se encontra num passeio rápido à volta do edifício, onde há outros restaurantes e cafés. O chão foi dado por uns, a maquinaria por outros, diz Francisca Gorjão Henriques – “começou com ajudas fundamentais, porque não havia maneira de fazer um investimento à cabeça, mas nós temos a certeza de que é auto-sustentável porque a comida é muito boa”, assegura, lembrando que um dos objetivos era e continua a ser, no futuro do restaurante, envolver a sociedade civil.

A massa das baklauas é feita folha a folha
©Francisco Santos

Quanto à parede do fundo, o que faltava há uns tempos era fotografias da Síria. Todos os que de lá vieram e entravam no Mezze reagiam da mesma maneira: “Está bonito, mas faltam aqui fotografias da Síria”, repete Francisca. Resolveu-se o assunto e já lá estão umas quantas.

Mercado de Arroios, Rua Ângela Pinto, 12. Ter-Sáb 12.00-00.00, a cozinha fecha às 22.30.

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