“O Benfica não é um clube, é uma religião.” O primeiro a proferir estas palavras foi o actor e cineasta Artur Semedo, mas muitos as repetiram desde então. Por exemplo, o ponta-de-lança lituano Jankauskas. “O Benfica é uma religião”, dizia ele algum tempo antes de assinar pelo FC Porto. Que, desculpar-se-ia ele pouco depois, também era uma religião. Em Santarém, devotos a Neno, o guarda-redes cantor, comemoram o Nenatal e o “milagre das redes”. O que é que isto tem a ver com Pyre, o mais recente lançamento do estúdio indie Supergiant? Calma que já lá vamos.
Mas antes vamos ser sérios. Vamos falar de FIFA 17. Há um ano, a histórica série desportiva introduziu um novo modo, “The Journey”, algures entre uma simulação futebolística e um RPG à moda da Bioware – é possível melhorar os atributos da personagem e tudo. A ideia de misturar desporto com mecânicas de RPG é boa, mas o jogo da Electronic Arts (ainda) não faz justiça ao potencial da mesma. Para isso temos Pyre, disponível para computador e consolas PlayStation 4.
Depois de Bastion (2011) e Transistor (2014), dois RPG inventivos com uma direcção de arte feérica, a Supergiant Games decidiu fazer uma aventura desportiva com ares de romance visual e extraordinariamente bem escrita, que também é uma uma crítica social e se confunde com uma parábola religiosa. Em última análise, é um convite à insurreição. É tudo o que se quer.
Encarnamos um personagem anónimo conhecido apenas como o leitor, que foi enviado para o Downside, um reino-prisão algures entre o inferno e um purgatório ao qual são condenados os habitantes de uma Commonwealth pouco democrática. Os delitos podem ir desde a fraude ao contrabando, passando por deserção e, no caso do protagonista, literacia. Este último “crime” pode parecer absurdo, mas até faz sentido: poucas coisas são tão perigosas para um autocrata como uma população informada.
O jogador vê-se envolvido numa competição desportiva que coloca frente-a-frente várias equipas de condenados – faz as vezes de treinador, controlando uma formação com três elementos. Narrativamente, esta competição é um misto de serviço religioso e escada social, bem como a única forma de reconquistar a liberdade. Enquanto que mecanicamente é um misto de basquetebol e futebol americano com elementos de RPG. A história desenrola-se nos tempos mortos, nos dias entre cada partida. E, em parte, prende-se com uma insurreição contra o governo, gerida a partir do submundo com o apoio dos concorrentes que foram ganhando liberdade.
Pelo meio, há muitas regras para aprender, e os confrontos tornam-se mais complexos com o passar do tempo, à medida que são introduzidos novos elementos, mas mal se dá por isso. E o jogo continua mesmo quando perdemos. Tudo flui naturalmente enquanto a história se desenrola. Como um jantar com os amigos em que, sem se dar por isso, bebemos uma garrafa de tinto sozinhos. Pyre tem a vantagem de no dia a seguir conseguirmos trabalhar na boa.