
10 Salve Reginas para rogar à Virgem
Um concerto na Fundação Gulbenkian dá a ouvir um Salve Regina acabado de estrear, da autoria do compositor Eurico Carrapatoso. É ocasião para passar em revista algumas notáveis versões deste hino mariano
O hino Salve Regina põe em relevo o papel da Virgem Maria como intercessora, isto é, alguém mais disponível para dar atenção às preces dos crentes, talvez por – e isto é pura especulação, não endossada por nenhum tratado teológico ou encíclica papal – não estar tão assoberbada pelas pesadas responsabilidades de gestão do Universo que recaem sobre as divindades masculinas e por os corações femininos serem mais dados a condoer-se dos padecimentos alheios.
Começa assim o hino: “Salve, Rainha, mãe de misericórdia/ vida, doçura, esperança nossa, salve!/ A vós bradamos os degredados filhos de Eva”. Ou seja: a Humanidade caiu por causa de uma mulher e espera que seja outra a salvá-la. O hino designa Maria como “advogada nossa”, atribui-lhe “olhos misericordiosos” e suplica-lhe “Rogai por nós, santa mãe de Deus,/ para que sejamos dignos das promessas de Cristo”.
Concerto mariano na Fundação Gulbenkian
O Salve Regina do português Eurico Carrapatoso (n. 1962), e The Sun Danced, do escocês James MacMillan (n. 1959), foram encomendados pelo Santuário de Fátima para assinalar o centenário das “aparições” de Nossa Senhora aos pastorinhos e serão estreadas dois dias antes deste concerto em Lisboa na Basílica de Fátima, pelos mesmos intérpretes, o Coro & Orquestra Gulbenkian e a maestrina Joana Carneiro.
O programa completa-se com a Sinfonia n.º 3 op.36 Das Lamentações, do polaco Henryk Górecki, cujo I andamento recorre a um texto polaco do séc. XV que exprime o lamento de Maria pelo seu filho. A sinfonia de Górecki terá como solista a soprano Elisabete Matos.
Fundação Gulbenkian, domingo 15, 18.00, 12-24€.
10 Salve Reginas para rogar à Virgem
Josquin
O franco-flamengo Josquin Desprez (c.1450-1521) foi o mais afamado compositor da sua geração e desenvolveu actividade nalgumas das mais influentes cortes e centros religiosos da Europa: Aix-en-Provence, Milão, Ferrara, Roma. Chegaram aos nossos dias dois Salve Regina de sua autoria, um a quatro vozes e outro a cinco, sendo o primeiro um prodigioso exercício de contraponto, em duplo cânone, com duas das vozes (tenor e superius) a reproduzirem rigorosamente as outras duas (bassus e contratenor) numa tonalidade mais aguda (à distância de uma quarta). Um relato de 1520 do embaixador de Ferrara em Roma conta que a refeição do papa – à data seria Leão X – tinha como banda sonora um Salve Regina de Josquin. Apesar da voga gourmet, é música que hoje dificilmente se ouve em restaurantes.

Victoria
Entre os grandes compositores da Renascença, o espanhol Tomás Luis de Victoria (c.1548-1611) foi o único a ter-se concentrado exclusivamente na música sacra. Entre ela estão quatro Salve Reginas.

Vivaldi
O veneziano Antonio Vivaldi (1678-1741) deixou uma extensa obra sacra, na qual se contam dois Salve Regina, um para contralto e duas orquestras (o RV 616), destinado à Basílica de S. Marcos, e outro para soprano e orquestra de cordas (RV 617), cuja finalidade se desconhece e cuja partitura não está assinada pelo compositor.
A maior parte dos compositores do período Barroco entendeu que a natureza intimista e penitencial do texto requeria uma voz solista aguda – de soprano ou contralto – e uma atmosfera dominantemente sombria.

Handel
O alemão (e, mais tarde, cidadão britânico) Georg Friedrich Händel (1685-1756) era um rapaz de 22 anos a passar uma fabulosa temporada em Itália – apresentava-se então como “Giorgio Federico Hendel” – quando compôs o Salve Regina HWV 241, encomendado pela poderosa família Colonna e estreado a 16 de Julho de 1707 na igreja de Santa Maria di Montesanto, em Roma. A obra destina-se a soprano e orquestra de cordas.

Pergolesi
Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) teve uma carreira tragicamente curta – faleceu com 26 anos – mas deixou uma obra considerável, onde se contam dois Salve Regina para soprano e orquestra, um em dó menor e outro em lá menor. O mais célebre é o Salve Regina em dó menor, que terá sido composto c.1735-36 e de que existe também uma versão em fá menor, para voz de alto.

Hasse
O hoje esquecido Johann Adolf Hasse (1699-1783) foi um dos mais prestigiados e bem pagos compositores do Barroco tardio, tendo composto 80 óperas para os teatros de Itália e para a corte de Augusto III, eleitor da Saxónia, em Dresden. Em 1733, Hasse assumiu o cobiçado cargo de mestre de capela desta corte, primeiro in absentia, ou seja, fornecendo música mas continuando a gerir a sua carreira operática em Itália, e, a partir de 1744 e até 1763, de forma efectiva. Nesta qualidade, além de providenciar óperas para o entretenimento da corte, também compôs para a igreja católica da corte – o eleitor da Saxónia, de população luterana, seria, em princípio, luterano, mas, de forma a poder assumir o trono da católica Polónia, Augusto III convertera-se ao catolicismo (como o seu pai já fizera), revelando um pragmatismo de que o próprio já dera mostras, ao converter-se ao catolicismo em 1725, de forma a facilitar a sua afirmação no meio operático italiano.
Após a morte de Augusto III, Hasse trabalhou para a corte imperial de Viena e foi durante este período que compôs o Salve Regina em mi bemol maior para soprano e contralto, datado de 1767, que se soma a pelo menos outras duas versões para soprano.

JC Bach
Johann Sebastian Bach, como os restantes compositores da Europa luterana, não compôs Salve Reginas, uma vez que o culto luterano não incentivava a adoração da Virgem Maria. Porém, o seu filho mais novo, Johann Christian (1735-1782), foi para Bolonha em 1756, para estudar com o Padre Martini e acabou por passar a fase inicial da carreira em Itália, convertendo-se ao catolicismo, tornando-se organista na catedral de Milão e compondo várias obras para o culto católico. Entre elas estão dois Salve Regina, um deles (E23) de atribuição duvidosa e outro (E24) composto c. 1760, de cujas circunstâncias (finalidade, local e data de estreia) nada se sabe.
As marcas da estética “galante” (que faz a transição do Barroco para o Classicismo), que já eram audíveis nos Salve Regina de Pergolesi e de Hasse, são ainda mais patentes na versão de Johann Christian Bach.

Haydn
Joseph Haydn (1732-1809) é autor de dois Salve Regina: o primeiro, com o n.º de catálogo Hob. XXIIIb1, é uma obra de juventude, composta em 1756, pouco depois de o compositor concluir os estudos com Nicola Porpora. É, como as duas anteriores (de Hasse e J.C. Bach), uma obra na charneira entre dois períodos e os floreados da sua componente vocal denotam influências da escola napolitana de que Porpora era um dos mais reputados mestres.

Poulenc
O interesse dos compositores por musicar o hino Salve Regina declinou vertiginosamente à entrada do período clássico. As excepções entre os grandes compositores foram Schubert (com quatro versões) e Liszt, mas há que admitir que, em ambos os casos se tratam de obras menores na sua carreira. Um dos poucos compositores do século XX que consagrou à música sacra uma parte relevante da sua energia foi Francis Poulenc (1899-1963), que em 1941 compôs um Salve Regina para coro misto a quatro vozes.

Pärt
O mais célebre Salve Regina do século XXI é do estónio Arvo Pärt (n. 1935) e foi estreado na catedral de Essen, na Alemanha, a 22 de Maio de 2002, assinalando os 1150 anos da fundação da Abadia de Essen. Foi o bispo de Essen, a quem a obra foi dedicada, que sugeriu a Pärt o texto, inspirado pelo facto de a catedral de Essen albergar uma famosa escultura da Virgem com Jesus – a “Madona Dourada de Essen” – datada do ano 980, o que faz dela a mais antiga Madona a norte dos Alpes.
