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800 Gondomar
Tiago Mogege Silva800 Gondomar

800 Gondomar: “Tivemos de fazer coisas novas para ter o que dizer”

Cinco anos depois de se terem separado, os 800 Gondomar estão de regresso. No novo ‘São Gunão’, soam mais maduros e incisivos. Mas ainda não perderam a fúria de viver.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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As histórias da maior parte das bandas acabam antes do tempo. Ainda mais em Portugal, onde é quase impossível viver da música. Ou ter ânimo e paciência para continuar a tocá-la. “Tem que haver um grande controlo emocional e logístico, do tempo e das prioridades”, diz Rui Fonseca. “Às vezes, torna-se muito complicado fazer essa ginástica toda, sendo músico, freelancer, e a tentar viver numa das cidades mais gentrificadas do país [o Porto]”. Na adolescência, Rui foi o baterista, letrista e vocalista dos 800 Gondomar, um desses grupos cuja história parecia ter terminado cedo demais. Despediram-se em Setembro de 2018, com um concerto no quintal dele em Rio Tinto – seguido por outro menos mitificado, em 2019, na ZDB. Hoje, no entanto, sabemos que a sua história não tinha terminado. São Gunão, o álbum editado em Março e agora apresentado ao vivo, está aí para prová-lo.

E ainda bem. O hiato anunciado em 2018 tinha deixado um sabor amargo na boca. Os EPs de estreia e o único álbum desta primeira vida, Linhas de Baixo (2017), eram documentos garage-punk com vigor adolescente, riffs tesudos e refrães prontos para serem entoados em conjunto, mas escutava-se nas entrelinhas que o melhor ainda estava para vir. Ao vivo, confirmavam-se estas suspeitas. Em palcos institucionais ou improvisados, de norte a sul do país, os 800 Gondomar revelavam-se uma força de natureza; podiam ter assumido o nome do autocarro que ligava a freguesia suburbana de Rio Tinto à Baixa do Porto, mas eram uma locomotiva de alta velocidade. Há pelo menos uma pessoa que viu uma gravação do concerto deles no coreto do NOS Alive, em 2018, e só curou a mágoa de não ter estado lá passados cinco anos, quando eles se reuniram e os pôde ver finalmente.

Em Atenas já é uma febre

Poucas bandas parecem gostar tanto de tocar como os 800 Gondomar. Como centenas de putos do subúrbio e do interior, os vizinhos Rui Fonseca e Frederico Ferreira juntaram-se “por volta dos 13 anos” – Alô Farooq, o terceiro elemento, veio mais tarde – para exorcizar o tédio de viver numa terra onde não parecia passar-se nada. Uma sensação paradoxalmente amplificada, no seu caso, pela proximidade ao Porto. Estavam apenas a quatro quilómetros do Estádio do Dragão e a sete da Rua de Passos Manuel do Maus Hábitos, do Coliseu, do edifício cultural homónimo e das francesinhas mais gostosas da cidade (olá, Café Santiago), porém a distância parecia maior com aquela idade. Tocar era um escape. Chegaram a dar 60 concertos num ano, sem quererem saber das condições.

Ainda é um escape, aliás. “Prezamos muito a componente ao vivo, e acho que conseguimos sobressair”, começa a justificar Alô, o baixista. “Um dos nossos objectivos sempre foi chegar ao maior número de sítios possíveis em Portugal.” E no estrangeiro. Numa fase anterior das suas carreiras, chegaram a aventurar-se lá fora. Há um ano, no mesmo dia 23 de Março em que anunciaram o seu regresso através do Facebook, começaram uma digressão pela Grécia e a Macedónia do Norte. Uma opção tão invulgar como, para eles, inevitável. “Há uma vontade de desconstrução e de auto-proposta de desafios que tem que existir, caso contrário cai-se num marasmo que foi o que nos levou a arrumar as botas há seis anos. A Grécia pareceu-nos uma escolha tão desafiante quanto apelativa e óbvia”, explica Rui. “E foi um estrondo.”

O baterista e compositor tinha passado um Verão na Grécia, “durante o interregno dos 800 Gondomar, em que houve tempo para esse tipo de projectos”. Corrige-se: “De desvios.” Nessa altura, não era propriamente um músico em actividade. “Nunca surgiu muito à baila a questão, por exemplo, de me entrosar no meio artístico, ou tentar perceber o que é que se fazia musicalmente nas várias cidades. Mas nasceu um grande sentimento de identificação. Depois consegui convencer os meus colegas a voltarem comigo. E lá fomos, apesar de não haver ninguém a consumir a nossa música.” Pelo menos até os três membros mergulharem na internet. “Clique aqui, clique acolá, conseguimos encontrar pessoal que gostou muito do que estávamos a fazer e fomos para lá”, conta o artista. 

Quando aterraram, não sabiam o que os esperava. “Antes de darmos o primeiro concerto era tudo uma incógnita”, garante Farooq. “Não sabíamos quem eram aquelas pessoas, onde nos estávamos a meter”, detalha Rui. Não demoraram muito, porém, a perceber que os interlocutores helénicos eram “só pessoas incríveis”. As memórias desta odisseia são as melhores. “Os dois primeiros concertos foram em Atenas. O segundo esgotou e o primeiro esteve muito perto disso. Nem sei se [o primeiro] era um sítio com uma lotação controlada, mas acho que não dava para meter mais ninguém lá dentro. Também tivemos a preocupação de não nos limitarmos aos grandes centros urbanos. Fomos de Atenas até Tessalónica, mas também a Janina, nas montanhas. E na Macedónia ainda fomos a uma cidade mais pequena, Bitola. Devemos ter sido os primeiros portugueses a tocar lá.”

A excursão correu tão bem que a Patari Records, responsável pelos concertos em Atenas, decidiu editar São Gunão em cassete na Grécia. E equacionam voltar lá para apresentá-lo. Mas não é para já. Os planos para os próximos meses passam por Portugal. Não apenas pelo Porto e por Lisboa, por todo o país. A digressão arranca esta sexta-feira, 5 de Abril, no Maus Hábitos (Porto). Seguem-se mais dois concertos a norte (a 24 de Abril em Braga e a 4 de Maio em Gondomar), antes da apresentação em Lisboa, a 16 de Maio, uma quinta-feira, no B.Leza. Logo a seguir passam por Portalegre (17), Cadima (18) e Coimbra (19). Vão ainda a Vigo, a Santa Maria de Lamas, ao Barreiro, a Castelo Branco e a Aveiro. Têm mais umas datas reservadas na agenda e, se não tocarem pelo menos nuns quantos festivais este Verão, é só porque os programadores andam a dormir no serviço.

“Não consigo dizer se essa vontade de descentralização provém da maneira como nós fomos, entre aspas, criados e nos desenvolvemos, num meio um bocadinho descentralizado. Só sei que gostamos mesmo de ir tocar a sítios diferentes”, afirma Rui. “Portugal é pequeno, mas há mesmo uma grande diferença nas relações sócio-culturais entre lugares que, às vezes, estão separados apenas por 20, 30 quilómetros. Agrada-nos a ideia de tentar criar uma espécie de fluxo que liga esses pontos de uma forma ou de outra.” “É bem diferente tocar em Lisboa ou no Barreiro. O que as pessoas te passam, a energia, não tem nada a ver”, aprofunda Alô. “O tecido cultural longe dos grandes centros metropolitanos é completamente distinto. Acho, sinceramente, que tocar lá faz evoluir a banda de formas mesmo muito imprevisíveis. A banda e as pessoas”, atalha o baterista.

Este garage-punk não é (só) para meninos

No tempo que passaram separados, os 800 Gondomar cresceram. Foi, em parte, por e para isso que se separam. “Sentimos que estávamos a começar a repetir certos padrões, ao nível da música, mas também no nosso relacionamento. E quisemos explorar outras áreas do nosso interesse”, detalha Farooq. “Não quisemos saturar o nosso discurso”, acrescenta o letrista. “Tivemos de fazer coisas novas para ter coisas novas a dizer.” Rui Fonseca reinventou-se como querido lider e, na cassete Vai‑se City, explorou o seu interesse pelo noise e a música ambiental. Juntou-se também à banda de call center, no baixo, mas entretanto abandonou a formação. O guitarrista e vocalista Frederico Ferreira entrou para os Sunflowers. E Alô Farooq dedicou-se sobretudo ao cinema, apesar de ter desenvolvido “um ou outro projecto de improviso momentâneo, nunca com uma banda ou assim”.

“Na altura em que parámos tínhamos 20 ou 21 anos. Agora já temos outra idade e uma perspectiva diferente sobre as coisas”, considera Fred. “Somos mais incisivos naquilo que temos a dizer”, acrescenta Rui. “Somos mais maduros e donos dos nossos sentimentos e do nosso discurso. Isso faz com que tudo resulte um bocadinho melhor. E que [a banda] seja mais eficaz, por assim dizer.” Não se pense, porém, que se extinguiu o fogo da juventude. “Há algumas coisas que liricamente ainda se podem associar a tempos mais juvenis”, admite o baterista. “Mas sinto que estamos a dizer adeus a essa fase das nossas vidas, ainda sem saber o que é que vai acontecer a seguir, ou sobre o que é que se vai escrever depois.” Só têm uma certeza: “Existe uma imagética à qual já estamos a fazer jus há muito tempo, e estamos a crescer para fora dela. É o curso natural das coisas”.

Há estroinice folk-punk, selvajaria garage-rock, psicadelismo doce e pesado, até um par de baladas lo-fi. Há de tudo neste São Gunão, a começar pelo canto responsorial e raivoso de “Rio Tinto”: “Eu não sei mas ouvi dizer/ que aqui já não dá para viver/ eu não sei mas ouvi falar/ que eu vou ter de me mudar/ Vou para Rio Tinto/ Rio Tinto/ Rio Tinto/ Rio ahhhhhh”. O desânimo de Rui Fonseca parece crescer à medida que as palavras se sucedem e reflectem aquilo por que passou. “Também estive a viver no Porto, mas voltei para Rio Tinto”, partilha. Apesar do desespero que permeia a canção, reconhece que nem tudo foi negativo neste regresso. “Dantes, Rio Tinto tinha uma conotação diferente. Era um subúrbio muito indesejado. Parecia que toda a gente apontava os seus recursos para viver na baixa do Porto. Tanto adolescentes como malta a roçar os 30”, recorda. 

“Até que, devido a toda esta pressão imobiliária e à reformulação de objectivos na vida, Rio Tinto passou a ser uma zona mais desejável. Não é que tenha perdido algumas das componentes que antes o tornavam mais soturno, mas é bonito observar como as pessoas e as suas prioridades vão mudando ao longo do tempo”, continua o letrista. “De repente, uma zona descentralizada passa a ser ideal para a construção de uma vida e de uma família – devido a esses valores obscenos que se andam a praticar.” A atenção foca-se de novo no disco e no regresso dos 800 Gondomar. “Acho forte começar logo a cantar sobre o tema que sempre se cantou. Sobretudo porque agora tem um significado completamente diferente. Tentei debruçar-me um bocadinho sobre isso.”

Rui Fonseca, que desta vez assina todas as letras, sempre escreveu sobre o que sabe e o que vive. “O nosso modus operandi é falar quase exclusivamente daquilo que está à nossa volta, dos meios em que nos propagamos, das lutas que travamos, das respostas a que julgamos chegar. Também com a certeza de que num próximo disco pode surgir uma coisa a desautorizar completamente aquilo que antes era uma verdade inquestionável. E acho que isso acaba por ser um processo muito valioso”, sumariza. “Se nós nos limitarmos àquilo que nos rodeia, se optarmos por uma abordagem quase neo-realista a esta coisa de fazer música, existe mesmo uma multiplicidade de paisagens e histórias para serem contadas.”

“Encontro algum conforto nisto. Em contar histórias que sei que a pessoa que está ao meu lado conhece perfeitamente, porque também esteve lá ou passou pelo mesmo”, desenvolve o letrista. “E é curioso que, apesar de o Rui ter escrito as letras todas, não há nada de que ele fale nelas com que eu e o Fred não nos consigamos identificar”, aponta Alô. É o que dá tocar com amigos de longa data. É mais complicado do que parece, contudo. “Esforço-me por criar uma linha muito ténue, mas ao mesmo tempo sólida, que vá da intimidade que partilhamos até um sentimento de pertença colectivo para outras pessoas. É aí que está o grande valor do que fazemos.” O que nos leva de volta a “Rio Tinto”. O poema é simples e tem um lado biográfico. Pode parecer contra-intuitivo, mas isso fá-lo universal. Substitua-se “Rio Tinto” por outra terra, por outro subúrbio qualquer, e muita gente com 20 e tal anos, como eles, sentir-se-á representada – mas também trintões e millennials quarentões. 

As outras canções versam sobre diferentes assuntos, mas são atravessadas pelo mesmo mal-estar. Numas falta “o guito” e pede-se “um euro para o autocarro”; noutras garantem que “não há mal/ nenhum/ em quinar o dia todo/ porque [estamos no] lodo” e que, no final, havemos de encontrar alguém que goste de nós. Os temas e as letras podem ser óbvios. Sejam. É sinal de que vale a pena cantá-los. Sobretudo quando há talento para resumir o que está mal à nossa volta em meia dúzia de palavras sentidas e honestas. Por exemplo, que “privilégio de classe é melhor do que carisma” (a ecoar como um mantra em “Sexta-À-Noite Com O Monstro”). E quem nos tenta convencer de que isto não é verdade está a tentar enganar-nos. Pior, a fazer de nós parvos. Já os 800 Gondomar não tomam ninguém por parvo. São boa gente e respeitam demasiado quem os ouve. Bem hajam.

B.Leza. 16 Mai (Qui). 22.00. 8€

Continuamos à conversa

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