A Time Out na sua caixa de entrada

Procurar
CAVEIRA
© António Júlio DuarteCAVEIRA

À beira do abismo, os Caveira desafiam-nos a ficar vivos. “Mais vivos”

Passados 20 anos, a banda de Pedro Gomes editou finalmente o álbum que o guitarrista tinha na cabeça, onde o free-jazz, o rock e os blues se reconfiguram. Valeu a pena esperar por ‘ficar vivo’.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
Publicidade

Pedro Gomes acompanha e molda o underground lisboeta – e, por arrasto, o português – há mais de duas décadas. Escreveu n’A puta da subjectividade e no Ípsilon, programou a ZDB, ajudou a fundar a Filho Único e a editora Príncipe, trabalhou com o Museu Berardo e com o MAAT, agenciou lendas do jazz internacional e outros músicos com vistas largas, tocou com muita gente. Começou e cansou-se de fazer um pouco de tudo. Só nunca desistiu da sua guitarra e da sua banda, os Caveira, que acabam de lançar “o primeiro álbum a sério”, ficar vivo, quase 20 anos depois das primeiras edições. 

O título é todo um programa. Parece simples, não podia ser mais directo, todavia dá-se a outro tipo de leituras. “É o contrário de estar morto”, brinca Pedro Alves Sousa, um dos mais destacados saxofonistas e refrescantes compositores do jazz e das músicas exploratórias portuguesas, que se juntou a esta formação há uma década. “Para mim, é um testamento à resiliência”, acrescenta, agora mais a sério. Gomes, que deu o nome ao álbum, toma a palavra. “Para mim, é uma coisa bífida. Há uma leitura mais linear, uma questão de sobrevivência. Mas há outro aspecto, que me parece mais importante ainda. Que é a ideia de a coisa ficar mais intensa. Ficar mais vivo”, desenvolve. “Começar a sentir mais coisas. Com mais força. O ficar vivo para mim é isso. É uma coisa meio amplificadora.”

No eixo da Caveira

À primeira vista, os Caveira de 2024 – um quarteto com Gabriel Ferrandini (bateria), Pedro Alves Sousa (sax) e Miguel Abras (baixo) – não têm nada a ver com aqueles que em 2004 se estrearam a gravar uma versão de “Sharon 7tone” para Delfins’ Not Dead!, disco de tributo hardcore aos Delfins. Na altura, eram um trio, composto por Rita Vozone e Quim Albergaria (PAUS, Bateu Matou), além de Gomes. A mesma formação que gravou, em CD-R, África, Quebranto, Cena Espírita, bem como a compilação da Caravana do Estrilho, com Tropa Macaca e Fish & Sheep. Nem sequer com o fugaz trio com Gabriel Ferrandini e André Abel (de Tropa Macaca), que só esteve junto um par de anos.

Gomes discorda desta leitura superficial. “Existe um contínuo”, diz, calmamente, sentado numa mesa do Sporting Clube da Penha, com uma cerveja à sua frente e um cigarro na mão. “O eixo daquilo, o lado obsessivo daquilo, no fundo, é o mesmo. Uma espécie de ímpeto de chegar a um estado abismal qualquer onde se encontram coisas no domínio da metafísica e da amplificação da energia.” Ri-se. “Isto para mim são coisas muito concretas.” Pausa. “É um drive pessoal que eu tenho.” 

Disse algo muito parecido há 12 anos, antes do primeiro concerto do trio com Gabriel e André. Recordamos as palavras publicadas na Time Out na altura: “Há uma continuidade no sentido em que somos uma banda de música improvisada, ou melhor, de música que não está escrita. As obsessões são praticamente idênticas hoje ao que eram em 2003/2004. São coisas que têm que ver com frase e métrica, com rock, blues e jazz. E que têm que ver com um trabalho no abismo. Ou seja, tocar em progressão no sentido da escuridão absoluta. Às vezes chamo a isso tocar para a cara da morte.”

Pode parecer ensaiado, no entanto é genuíno. O guitarrista sempre soube exactamente o que queria fazer com os Caveira. Só não sabia como. “Havia pessoas que me perguntavam pelo disco há anos”, conta. “E eu explicava que ainda não estava lá o som.” Tinha estado quase lá dez anos antes, quando estava a tocar “a música que tinha na cabeça há anos” com Ferrandini e André Abel. Chegaram a gravar um disco, na Zé dos Bois, mas houve um problema com um técnico de som e um microfone e “o som da guitarra ficou completamente mutilado. Aquilo foi directamente para o caixote do lixo.”

“Nunca tinha encontrado um sítio que estivesse acessível para mim e onde pudesse tentar traduzir o som que eu tinha na cabeça, que era muito claro. Até que fui ao Namouche fazer umas gravações para o Sei Miguel”, continua. “Pela primeira vez, havia condições para estarmos todos juntos a tocar na mesma sala e o som estar legível a um nível 4K Ultra HD, que são os termos que a gente usa. Portanto, a coisa tinha que estar muito nítida, tinha que ter fundura, tinha que ter corpo, e tinha que ser, no fundo, uma tradução exacta do que se ouve quando o som está bem feito e do que eu ouço na minha cabeça que deve ser o som.”

Compressão = Zero

Pedro Gomes prefere não dizer quando é que os Caveira gravaram ficar vivo. Dá a entender que foi um ano complicado e segue em frente. Não se importa, porém, de mapear o trabalho desenvolvido, sempre na companhia de Joaquim Monte, dos estúdios Namouche, que registou e misturou o álbum com eles. “Nessas sessões, gravámos sete horas de música”, detalha o guitarrista. “Depois estivemos quatro anos a misturar o disco.”

Sim, quatro anos. “Durante esse tempo fui [viver] para o Alentejo, também houve a pandemia. Sempre avanços e recuos”, justifica. Mas não foi só isso que atrasou o processo. O maior empecilho foi recusarem-se a usar compressores sonoros. “Nem na mistura, nem no master final. Ou seja, tens as dinâmicas todas, como na [música] clássica, como nos discos da Deutsche Grammophon. Quanto mais tu puxas o volume, não no computador mas numa aparelhagem, mais detalhes ouves. O som fica só mais nítido.”

Isso custou caro, porém. Não em dinheiro, mas em tempo, o que acaba por ser quase a mesma coisa. “Nós ouvimos, e ouvimos, e ouvimos, e ouvimos, e ouvimos, e ouvimos cada take. Começámos a estabelecer uma grelha de edição. E a cortar coisas”, prossegue. “Como é tudo tocado live, no mesmo espaço físico, quase sem isolamento e sem qualquer compressão, temos de ir pista a pista – e só de bateria são 11 ou 12 – fazer um trabalho completamente caligráfico, de correcção de volume.” O resto do grupo preferia não ter tido esse trabalho extra. “Eles gozaram comigo durante anos”, assume o líder da formação. “Mas agora ouvem o disco e, pronto, calam-se.” Pela cara, o saxofonista Pedro Sousa, não parece completamente convencido. Mas diz que sim.

Feitas as contas, das sete horas de música originais, ficaram 31 minutos e 59 segundos no disco, masterizado por Tó Pinheiro da Silva e dividido em três faixas. A primeira, “Brilho”, é descrita pelo guitarrista como “um take meio mágico”, daqueles que “fazes meia dúzia de vezes na vida se tiveres sorte”. Ao longo dos seus 13 minutos e 40 segundos, o free-jazz e o rock são arrastados em novas direcções. Todos os elementos têm espaço para respirar e se mostrar. Os riffs e o feedback da guitarra de Pedro Gomes tão depressa nos assaltam como flirtam com o silêncio. Miguel Abras segura as pontas soltas com o seu baixo, eléctrico e ágil, discreto e certeiro tipo James Bond. Gabriel Ferrandini bate nos pratos com uma precisão cirúrgica, estabelecendo alternadamente diálogos com Gomes e com o velho cúmplice Sousa, a dar o que tem e o que não tem ao saxofone.

“Caveira é a banda que puxa mais por mim a tocar. Custa mesmo. E deixa-me frustrado, porque parece que estou sempre à porrada com a falta de elasticidade do meu instrumento”, queixa-se o saxofonista. “Eles têm knobs de volume. E eu não tenho. Então muito da minha cena de tocar neste quarteto também tem a ver com eu estar ali à luta. E estar à luta com o som. Mas estamos nessa luta, a fazer música, em conjunto.” E é vital termos gajos em quem confiamos a guardarem-nos as costas quando partimos para a porrada. Como ele tem.

Segue-se, com pouco mais de sete minutos, a segunda faixa, “Dolência”. É considerada pelo líder do grupo “uma balada muito bonita, muito triste e muito sincera”. “Por acaso, quando a gravámos, tinha tido uns dias muito difíceis a nível pessoal, e aquilo está lá”, confessa. “Estive muitos anos também obcecado com a duração das frases do Chet Baker. E estive muitos anos a tentar trabalhar sobre isso, sobre a duração das frases e como é que as frases são cantadas. Como é que elas se tornam assim. Como é que a frase pode ser contínua. Como é que a música se pode ir sempre modulando no sentido progressivo.”

E depois há a terceira, “Portal”, dois takes diferentes que eles passaram meses a tentar colar num único e coeso tema. O tempo dispendido não foi perdido. É a que está mais próxima da doce barbárie free-rock da formação original de Caveira. O guitarrista reconhece as semelhanças, mas... “Tem um tecnicolor marado, tem um portal no meio. Portanto, também não é propriamente a coisa expectável. É uma faixa que atravessa tempos diferentes e espaços diferentes”, defende. É única, sem destoar do resto.

“Não curto discos que são só isto ou aquilo. Eu curto Kubrick. Curto trips. Quero ver coisas que nunca vi. E ser surpreendido”, afirma Gomes. Acho que essa é das coisas mais divertidas da vida, que te surpreendam. E que te mostrem coisas que tu nunca viste.” Reconhecemos a verdade nas suas palavras. É o que os Caveira sempre tentaram fazer. É o que ficar vivo faz.

Continuamos à conversa

Publicidade
Recomendado
    Também poderá gostar
    Também poderá gostar
    Publicidade