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Piano B. Bechstein
©DRPiano B. Bechstein

Oito peças para piano que metem água

A pianista Hélène Grimaud traz à Gulbenkian o programa “Espelhos d’Água”, constituído por peças que evocam a água nos seus diversos estados e manifestações e que mostra como diferentes compositores encontraram na água uma fonte de inspiração

Escrito por
José Carlos Fernandes
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O piano de cauda é um instrumento com escassa capacidade de flutuação e, na infortunada eventualidade de um naufrágio, o instinto ditará que nos agarremos antes a um contrabaixo ou a uma balalaika.

Porém, nenhum outro possui aptidão comparável para evocar o elemento líquido. Ainda assim, apesar de logo no início do século XIX Schubert ter produzido copiosa quantidade de canções para voz e piano de inspiração aquática, foi preciso esperar algumas décadas até a água se infiltrar na música para piano solo.

Várias destas obras fazem parte do programa “Espelhos d’Água”, que Hélène Grimaud apresenta na Fundação Gulbenkian, sábado 1 de Abril, 19.00, 20-40€. Quem não possa estar presente ou não consiga arranjar bilhete, pode ouvir programa análogo no CD Water (2016, Deutsche Grammophon).

Oito peças para piano que metem água

Liszt: Les Jeaux d’Eaux de la Villa d’Este (1877)

A peça faz parte do III Ano (Itália) da colecção Anos de Peregrinação (Années de Pèlerinage), publicada em 1883. Franz Liszt (1811-1886) foi o artista mais cosmopolita do seu tempo: fez tournées por toda a Europa (esteve em Lisboa em Janeiro-Fevereiro de 1845) e viveu vários anos em Paris, na Suíça e em Itália, antes de se estabelecer em Weimar e, a partir de 1876, em Budapeste. Seria nesta última cidade que comporia o III caderno dos Anos de Peregrinação, inspirado nas memórias da sua estadia em Itália.

A Villa d’Este, em Tivoli, perto de Roma, é afamada pelo seu jardim renascentista, com numerosas fontes, cascatas e grutas e é este mundo de jorros, salpicos, ondulações e cintilações que a peça de Liszt reproduz, num registo que prefigura o impressionismo de Debussy e Ravel.

[Por Claudio Arrau]

Grieg: O regato (1895)

O Regato (Bekken) faz parte do VII Caderno (op. 62) de Peças Líricas do norueguês Edvard Grieg (1843-1907). Grieg era um mestre da miniatura pianística, como atestam as 66 peças breves dos 10 cadernos de Peças Líricas compostas entre 1866 e 1901. O Regato é um fio de água brincalhão que saltita entre as rochas, fresco, cristalino e despretensioso.

[Por Hakon Austbo]

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Ravel: Jeaux d’Eaux (1901)

A peça foi inspirada por Les Jeaux d’Eaux de la Villa d’Este de Liszt e à data da sua composição Maurice Ravel (1875-1937) era aluno de Fauré, a quem a peça é dedicada. É uma obra que exige um virtuosismo extraordinário (que Ravel não possuía – a peça foi estreada, como muitas outras suas, por Ricardo Viñes), capaz de assegurar absoluta transparência e uma qualidade quase imaterial, como se estes salpicos e cintilações pertencessem a um mundo de sonho.

[Por Martha Argerich]

Debussy: Jardins sous la pluie (1903)

Nenhum compositor deu tanta atenção à água na sua obra como Claude Debussy (1862-1918). Jardins sous la pluie é a terceira peça de Estampes e retrata um jardim (mais especificamente, em Orbec, na Normandia) sobre o qual se abate um temporal: ouvimos o vento agitando árvores e arbustos e o martelar de milhares de gotas – e quem conheça música tradicional francesa e tenha ouvido apurado distinguirá também citações das canções “Nous N’Irons Plus au Bois” e “Dodo, l’Enfant Do”.

[Pelo próprio compositor, num registo realizado num rolo de piano Welte-Mignon, em 1912, e reproduzido mais recentemente num piano do mesmo tipo]

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Ravel: Une Barque Sur l’Océan (1905)

A viragem dos séculos XIX-XX foi um período fértil para a música de inspiração aquática, vindo os principais contributos de Debussy e Ravel. Une Barque sur l’Océan faz parte de Miroirs, uma suíte de cinco peças, estreada na sua forma integral por Ricardo Viñes em 1906. Retrata uma embarcação vogando no mar, subindo e descendo grandes vagas majestosas, no meio do jogo incessante da luz sobre a água. Mais tarde, Ravel produziria uma versão orquestral desta peça.

[Por Samson François]

Albéniz: El Puerto (1905-09)

El Puerto faz parte da suíte Iberia, o ponto culminante da obra do espanhol Isaac Albéniz (1860-1909). Iberia é devedora da música tradicional espanhola –há marcas do cante jondo andaluz, da jota aragonesa, do fandanguillo – e do impressionismo francês, dívida que é explicitada no subtítulo “Doze impressões para piano”. El Puerto é uma aguarela vibrante e luminosa do pequeno porto de pesca de Santa María, na Baía de Cádiz, e inspira-se no “polo”, uma canção dançada da Andaluzia, cujo turbilhão inebriante é quebrado por violentas notas marteladas.

[Por Alicia de Larrocha]

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Debussy: La Cathédrale Engloutie (1910)

La Cathédrale Engloutie faz parte do I Livro de Prelúdios e inspira-se na lenda da cidade de Ys, na Bretanha, que terá sido engolida pelo mar, como punição divina pela vida devassa da princesa Dahut, mas cuja catedral poderia ser vista em dias de maré baixa e água límpida. A peça começa numa bruma sonora, doce e fluida, que evoca as águas calmas, de onde emergem ecos dos carrilhões. Pouco a pouco, a arte de Debussy faz-nos distinguir os contornos de uma arquitectura monumental, mas tremeluzente e distorcida, como se fosse refractada pelas águas. A certa altura soa um coral arcaico e solene no órgão e, gradualmente, a catedral volta a submergir nas ondas.

[Por Hélène Grimaud; a peça é antecedida por um dos interlúdios (Transition 7) criados por Nitin Shawney para o CD Water]

Berio: Wasserklavier (1965)

Wasserklavier é a primeira dos Seis Encores, peças breves compostas por Luciano Berio (1925-2003) entre 1965 e 1990, quatro das quais aludem aos quatro elementos essenciais – água, ar, terra e fogo. Berio foi um dos mais importantes nomes da vanguarda musical do século XXI, mas esta singela peça nada tem de espinhosa e é afim do universo melancólico das derradeiras peças de Brahms e do impressionismo.

[Por Redi Llupa]

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