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IKOQWE
© Catarina Limão & BatidaIKOQWE

Pedro Coquenão: “Não conseguimos ser humanos sem cultura”

O projecto IKOQWE junta os artistas luso-angolanos Luaty Beirão (Ikonoklasta) e Pedro Coquenão (Batida). Falámos com Pedro Coquenão a propósito do novo disco da dupla.

Escrito por
Ana Patrícia Silva
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Não tem fronteiras, a criatividade de Pedro Coquenão. Os trabalhos que desenvolve na música, rádio, televisão, artes visuais e plásticas são um espelho do artista, mas também do mundo onde vive. E, num momento como este, é preciso fazer alguma coisa: escrever, pintar ou, porque não, denunciar as injustiças do mundo em música para dançar. Com o projecto IKOQWE, que o junta ao rapper e activista Luaty Beirão (Ikonoklasta), acaba de lançar The Beginning, the Medium, the End and the Infinite, um álbum em que dois personagens fictícios, vindos de um tempo e espaço distantes, são confrontados com o mundo de hoje, discorrendo sobre igualdade, democracia e neocolonialismo. Com colaborações de Celeste/Mariposa, Octa Push e Spoek Mathambo, é um disco poderoso que mistura a electrónica, o hip-hop da velha escola e a música tradicional angolana, com sons dos arquivos da Biblioteca Internacional de Música Africana. Pedro Coquenão explica como chegou até aqui.

Há algo de especial na forma como encaras a música de dança como um espaço de reflexão, de política e de luta contra a opressão. Habituámo-nos a pensar na dança como uma forma de escape, mas é talvez uma forma superior de nos conectarmos a nós próprios e aos outros. É assim que vês a tua música?
Devo começar por assumir que não costumo separar as duas palavras: música e dança. Não preciso escolher, tudo tem o seu lugar. A música, a dança, o teatro, o clube são parte da mesma coisa na minha cabeça. Parecem-me descendentes de uma roda numa aldeia em que todos participam, em que se contam histórias, assinalam-se momentos especiais, em que se apela ao essencial, e tudo isto pode ser encontro, celebração, reflexão e transcendência. Faz-nos muita falta. Ficamos a perder muito sem esse encontro. Somos certamente menores.

Neste disco usaste sons da Biblioteca Internacional de Música Africana. Que desafios e cuidados tiveste ao manobrar um arquivo tão precioso como este?
O desafio foi burocrático. Cuidados... todos os que me lembrei: pedir uma pesquisa com critério, onde pudesse ter todos os registos (da língua à geografia, aos temporais e de contexto), manter as ligações e ter a certeza de que o arquivo era creditado em tudo o que daqui resultasse. Depois é ter o devido respeito e a liberdade total para tentar acrescentar alguma coisa a essa memória.

Nasceste em Angola e cresceste em Portugal, tiveste dificuldade em encontrar a tua identidade e sentido de pertença ao longo da infância e adolescência? De que forma é que a música te ajudou nesse processo?
Sim, tive. Na infância apercebi-me de que, segundo o resto da classe, tinha um sotaque e usava palavras estranhas. Em casa ouvia os adultos falarem muito sobre o quão era diferente aqui em Portugal. A minha mãe sentia falta de coisas que não tínhamos aqui. O que mais falava era do horizonte. Nas reuniões familiares foi através de apresentações com os meus primos que reflectíamos tudo isso sem saber, fazendo versões de Duo Ouro Negro, MPB ou de coisas americanas de que gostávamos. Depois na adolescência tentei integrar-me o mais que pude, afastei-me destas referências. Manteve-se a música e a comida em casa, especialmente as cassetes da minha tia e os livros da minha mãe. Tornei-me numa mistura de coisas que incluíam uma tentativa tímida de vanguarda, uma poupa frágil, roupas do surf e do skate, um fascínio por música das bolinhas, maquetes punk, outras cassetes de DJ do meu primo, cheias de electro hip-hop mas também rock, muitas gravadas da rádio com baladas e um disco sempre debaixo do braço – um ladrão com bom gosto roubou-me um de Otis Redding. Ainda hoje tudo isto bate certo para mim. A descoberta do house tribal, dos broken beats e da música de dança sul-africana no final dos 90s fizeram-me sentir como inevitável procurar pontos de contacto com o continente e depois com a diáspora. Aqui estou.

Tens uma longa relação artística e de amizade com Luaty Beirão. O que é que gostavas que as pessoas soubessem sobre ele, que talvez desconheçam?
Que o nome artístico dele é Ikonoklasta. É nessa condição que aqui está. Tem 20 anos de carreira com algumas das melhores rimas escritas em Português, que podem encontrar num livro editado no Brasil intitulado Kanguei no Maiki. Que é um pai incrível… E que não trabalha para a CIA.

Numa altura em que discussões importantes sobre colonialismo, racismo e a falta de representatividade são abafadas por ruído, desinformação e hostilidade, que importância é que a música e um projecto como IKOQWE poderão ter?
A música salva-nos a vida. A desinformação...Vão sempre existir pessoas que querem confundir e dividir. As opiniões diferentes são essenciais, a liberdade de expressão não pode ser posta em causa e temos de deixar o humor em paz, por favor, mas a mentira tem de ter consequências. Tanto para quem as diz como para os meios que as difundem e validam. É importante conversarmos melhor, sem ruído. Todos os temas que apontas são essenciais para avançarmos mais resolvidos. É uma decisão que cabe à consciência de cada um, mas eu não consigo deixar de os abordar. Esta ideia reflecte isso. Não podemos aceitar o eternizar de uma história mal contada e o perpetuar da desigualdade social como normais. A arte é essencial aqui, como em tudo. Esta é mais uma contribuição.

Há uma imagem que passa lá para fora de uma nova Lisboa vibrante e multicultural, graças à criatividade de músicos afrodescendentes. Mas em Portugal essa música é ainda encarada como periférica e é marginalizada. Porque é que existe essa segregação, apesar de todo o reconhecimento internacional?
Sim, continua a existir uma estranheza e uma resistência. Não parece ser um amor assumido, se calhar porque não há esse amor, há um fascínio talvez, mas não acho que esse reconhecimento tenha de vir de fora. Como não acho que um artista tenha de depender deste país para o ter. É bom viver aqui, mas não é o melhor lugar para se trabalhar nas artes. Podemos agir socialmente aqui, mas não nos devemos limitar. Antes pelo contrário. Se um dia soubermos aproveitar isto melhor, bom para o país e para nós – o avião não é o meu meio de transporte preferido para ir para o trabalho regularmente. Não gosto do termo Nova Lisboa e não concordo que todos os artistas que contribuem sejam afro-descendentes. O que existe é uma vivência conjunta que inspira e junta muitas pessoas diferentes. Por amor, pela dança. Sendo inspirada no continente e sendo predominantemente parte da diáspora é também uma outra coisa. E, sim, acontece muito mais na periferia do que na Baixa ou nos pontos de decisão. Quem decide ainda é maioritariamente velho, conservador, os dois ou um jovem envelhecido. Há excepções que confirmam esta regra. Tenho esperança na mulheres e nos mais jovens. Espero que seja uma questão de tempo e de resiliência dos artistas, mas não dá mesmo para ficar aqui à beira-mar especado. Há o diálogo com os países africanos que também falam português, o Brasil e... o mundo inteiro.

Em momentos de crise, a cultura é sempre relegada para um plano ainda mais inferior em Portugal. O que é que as pessoas que nos governam deveriam perceber sobre a falta que a cultura nos faz, sobretudo em momentos como este?
Que não conseguimos ser humanos sem ela. Como fazer entender o óbvio? Dizendo que podem poupar em medicação, melhorar a saúde mental e com isso a produtividade? Precisamos de números… Só me ocorre uma acção conjunta de todos os agentes culturais parando de pagar impostos de um dia para o outro. Todos juntos ao mesmo tempo. Assumo que continuo a ser surpreendido com a descura. Ontem vi o Telejornal dedicar um pequeno espacinho ao assunto já mesmo no fim, mesmo antes do resumo do Benfica. Desliguei. Fui à RTP Play ver um documentário, O Extremo da Extrema-Direita. Nada de novo, mas é bom ver o demónio. Deveria fazer parte da roda, mas este foge. Não se quer misturar, o cobarde. Na realidade, esta é uma boa oportunidade para se criarem laços e também para nós como público assumirmos se precisamos mesmo desta coisa das artes ou se futebol, praia, sardinhas assadas e esplanadas chegam. Gosto muito de pimentos assados e de acreditar que muita gente está a ressacar de cultura e que tantos outros valorizam-na mais agora. Gosto de acreditar, mas não me fio na virgem.

Conversa afinada

  • Música

Nascidos das cinzas dos Hipnótica, os Beautify Junkyards chegam ao quarto álbum com uma formação que inclui João Branco Kyron (vozes e sintetizadores), Helena Espvall (violoncelo, flauta e guitarra acústica), João Moreira (guitarra acústica e sintetizadores), Sergue Ra (baixo), António Watts (bateria e percussão) e Martinez (vozes). Cosmorama expande o universo tropicalista e psicadélico da banda e pede o título emprestado a uma galeria que existia em Londres na era vitoriana, com projecções de locais distantes e exóticos, um portal para viajar no tempo e no espaço – no fundo, tudo o que pode esperar deste disco.

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  • Portuguesa

Desde que Mariza apareceu, nunca mais olhamos o fado da mesma forma. Num mundo globalizado, deu-lhe novas cores e coordenadas, mas sem desrespeitar a tradição. Agora a completar 20 anos de percurso musical, Mariza canta Amália, no centenário do nascimento da diva. Já a interpretou várias vezes, mas é a primeira vez que lhe dedica um álbum inteiro. Gravado entre Lisboa e o Rio de Janeiro, o disco conta com arranjos do músico e produtor brasileiro Jaques Morelenbaum. Com guitarra portuguesa, viola e orquestra, afloram influências do jazz e da música clássica, mas também da lusofonia.

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Pedro Lucas, que a solo assina como P.S. Lucas, nasceu no Faial, passou por Lisboa, viveu na Dinamarca e está de regresso à capital. Depois do cruzamento entre a electrónica e a música tradicional portuguesa nos discos de Medeiros/Lucas e O Experimentar Na M'Incomoda, assume influências de nomes como Leonard Cohen e Bill Callahan e aposta tudo em canções belas, onde redescobre o prazer da guitarra. O novo álbum In Between conta com o trio nuclear João Hasselberg (contrabaixo), David Eyguesier (guitarra) e João Sousa (bateria), e participações de Catarina Falcão ou Jerry The Cat.

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