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Estávamos em 2015 quando, acabada de se licenciar em História da Arte, Katy Hessel entrou numa feira e percebeu que, entre as milhares de obras diante de si, nenhuma era de uma mulher. Na altura, a sub-representação de mulheres artistas estava a tornar-se uma questão premente e Hessel estava a estudar Alice Neel (1900-1984), uma grande artista americana que só foi reconhecida pelas instituições artísticas após os 70 anos. De repente, a vontade de questionar o cânone começou a ganhar forma. Já nas bancas, A História da Arte Sem Homens não só nos apresenta as pioneiras que abriram caminho para as criadoras de hoje, como as mulheres que estão a redefinir o conceito de Arte no novo milénio. Editado em Portugal pela Objectiva, o livro – uma “bíblia” em capa dura, com mais de 520 páginas – é apresentado esta terça-feira, 1 de Outubro, às 18.30, na Fundação Calouste Gulbenkian. Antes, conversámos com a historiadora britânica, que tem celebrado diariamente mulheres artistas na conta de Instagram The Great Women Artists, nome também de um podcast e de uma residência artística anual no Palazzo Monti de Brescia, em Itália.
Na introdução, menciona que Alice Neel foi uma grande inspiração para a realização deste livro. Como é que o trabalho e a vida de Neel influenciaram a forma como decidiu abordar o desafio de destacar as contribuições das mulheres para a História da Arte?
Descobri o trabalho da Neels quando tinha 20 ou 21 anos. Foi uma espécie de abanão porque, embora ela fizesse retratos, um dos géneros compositivos mais antigos, ela fazia-o de forma ligeiramente diferente, porque pintava toda a gente. Pode não parecer muito inovador mas era. Ela fazia questão de mostrar que qualquer pessoa merece ser retratada ou fazer parte da História da Arte, e é impressionante como se concentrou em pessoas comuns e nas pessoas que realmente viveram e moldaram o mundo [família, amigos, artistas, escritores, activistas e até vizinhos do Harlem espanhol, onde morou em Nova Iorque, dos quais muitos eram mulheres, imigrantes ou desempregados]. E a verdade é que, se pensarmos na História da Arte, ou na História, há uma única versão que tem predominado, e o que Neel faz é confrontar-nos com outras perspectivas. Isso é muito poderoso, e foi o que procurei fazer.
“Esta é a minha primeira vez em Lisboa e já aprendi sobre tantas mulheres artistas portuguesas que gostaria de ter incluído no livro.”
Qual foi o maior desafio, tendo em conta a necessidade de reescrever uma história maioritariamente dominada por homens?
Este livro tem o triplo do tamanho em relação à proposta original e mesmo assim apresenta apenas uma fracção de uma fracção de uma fracção das mulheres artistas que contribuíram para a História da Arte. Esse foi o desafio – escolher quem entrava e quem ficava de fora –, e por isso digo que esta não é a versão definitiva de A História da Arte Sem Homens. Espero escrever muito mais volumes, até porque sempre vivi em Londres e, como vi muito mais do mundo nos últimos anos [do que no resto da minha vida], agora olho para o que escrevi e penso ‘Meu deus, não acredito que não incluí isto ou aquilo’. Nos últimos dias, por exemplo. Esta é a minha primeira vez em Lisboa e já aprendi sobre tantas mulheres artistas portuguesas que gostaria de ter incluído no livro.
Durante o processo, fez alguma descoberta que a tenha impactado particularmente?
Uma das minhas histórias preferidas é a de Charlotte Salomon, uma jovem judia nascida na Alemanha de 1916, que cresceu com a ascensão do nazismo e criou esta obra realmente espantosa com mais de 700 trabalhos em guache [que ela escolheu e numerou de um total de 1299] e que [juntamente com outras peças artísticas, incluindo uma narrativa de 32 mil palavras] compõem uma espécie de novela gráfica. Chama-se Life? or Theatre? porque é impossível compreender o que é o quê. Quer dizer, é tudo tão… insano, como é que isto pode ser verdade. Mesmo agora, é como se estivesse a ver o que se está a passar no Líbano e a perguntar-me, como é que isto pode ser real?
Houve algum período ou região específicos em que considerou as contribuições das mulheres particularmente significativas, mas pouco documentadas?
Todos [risos]. Logo no início dei por mim a perguntar por que é que quando me estava a formar não aprendi sobre artistas como a [pintora italiana] Artemisia Gentileschi. Como é que ela foi excluída dos livros quando contribuiu tanto para o período Barroco em Roma nos anos 1600? E é ainda mais chocante porque ela foi uma celebridade do seu tempo. As pessoas estavam tão obcecadas por ela que até faziam desenhos das suas mãos. Achavam-na divina. A questão é: como é que fomos privados da sua arte? Como é que as pessoas que escreveram os livros de História não questionaram o que estavam a fazer?
“Se não estivermos a ver arte feita por uma grande variedade de pessoas, então não estamos a ver a sociedade como um todo.”
Como é que o mundo da arte e o ensino da História da Arte podem ser mais inclusivos para as mulheres e outros grupos marginalizados?
Se não estivermos a ver arte feita por uma grande variedade de pessoas, então não estamos a ver a sociedade como um todo. É muito importante que aqueles que escrevem e contam a História da Arte questionem aquilo para que estão a olhar. Por exemplo, na Bienal de Veneza deste ano, o Adriano Pedrosa fez uma curadoria muito interessante, de uma forma que eu nunca tinha visto antes. E penso que é muito importante lembrar que lhe foi dada uma plataforma global, o poder de chamar a nossa atenção para uma série de obras, e cabe de facto às pessoas nessas posições perceberem a responsabilidade que têm em mãos. Se têm uma plataforma, usem-na sabiamente. Ontem, por exemplo, fui ao Centro de Arte Moderna [da Gulbenkian] e vi a exposição da [escultora] Leonor Antunes. O facto de lhe ter sido dado aquele espaço, daquela maneira, é muito entusiasmante.
É o que tem procurado fazer com a sua plataforma: dar espaço e voz às mulheres artistas?
Tento fazer a minha parte. Penso que é importante que todos possamos contribuir à nossa maneira. Recentemente fui ver uma exposição em Londres, chamada “Now You See Us”, que retrata 400 anos de artistas mulheres, de 1520 a 1920, e é impressionante ver como cada geração fortaleceu a seguinte. Em 1900 as mulheres já tinham realmente alcançado imenso, em comparação com os 100 anos anteriores. E isso foi também graças a uma série de activistas incansáveis. Como a Maria Balshow, directora do Tate. Não é de admirar que se estejam a promover exposições incríveis como “Women in Revolt!”.
Que artistas considera estarem, hoje, a fazer esse trabalho, de desafiar o status quo?
Penso imediatamente em alguém como a americana Kara Walker, que tem criado instalações gigantescas e desconcertantes [que nos falam de impérios e escravatura], ou a colombiana Doris Salcedo, que procura criar arte da perspectiva do terceiro mundo, da vítima, do inocente.
Quais são algumas das suas artistas preferidas que figuram no livro?
É impossível escolher. Todas me fascinam, a sério. Desde a Cindy Sherman, que nos confronta com os padrões de beleza e a forma como se tem idealizado as mulheres ao longo de séculos, até à Paula Rego, que pintou mulheres e nos permitiu ver o seu lado mais humano, menos objectificado.
“[Espero] que o meu livro se torne irrelevante.”
Daqui a 10, 20 anos, o que espera que tenha mudado?
Espero que as pessoas achem o meu livro ridículo. Que o deitem para o lixo. Não, estou a brincar. Espero que as pessoas pensem “Não acredito que este livro foi escrito. Porquê, como é que alguma vez foi necessário.” Esse é o meu objectivo: que se torne irrelevante.
A História da Arte Sem Homens, de Katy Hessel. Objectiva. 528 pp. 34,95€
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