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À procura de um pão irrepetível, a Massa Mãe é uma padaria-oásis (e está maior)

Paulo Martins mudou a sua padaria artesanal para uma das zonas mais movimentadas da Estrada de Benfica, com espaço para ter o seu próprio moinho. É comum ouvir-se que aqui se vende o melhor pão de Lisboa – e é difícil negá-lo.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Massa Mãe
Rita Chantre | Paulo Martins
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O pão que mais vende na Massa Mãe é o pão alentejano. “Para mal dos meus pecados”, lamenta-se Paulo Martins, que abriu esta padaria artesanal em 2018 e se mudou para uma loja muito maior, muito mais luminosa e sobretudo num sítio muito mais popular, em Novembro passado. Mas a angústia deste padeiro formado em Filosofia não tem nada a ver com o aumento do número de clientes que adveio da troca de morada, da inospitaleira Rua Conde de Almoster, com vista sobre a Linha de Sintra, para uma das zonas mais vividas da Estrada de Benfica. Disso, já estava à espera. A batalha de Paulo Martins é, antes de mais, com a própria memória: por mais que tente, não consegue replicar o pão alentejano da sua infância. Depois, o lamento deve-se ao facto de, mesmo assim, se ter visto obrigado a fazê-lo.

A história do pão alentejano conta-se por partes. “Se tiver de dar uma razão para eu ser padeiro, é o facto de ter comido muito pão alentejano quando era novo, quando havia pão alentejano nos subúrbios [de Lisboa]”, diz. “Eu venho do outro lado [Margem Sul], onde havia uma grande diáspora de alentejanos. O meu pai era uma dessas pessoas e na minha casa não entrava nada que não fosse pão alentejano. Era absolutamente ditador nisso – e tinha todos os motivos. Nos anos 1970 e 80, começavam a aparecer as carcaças, aquelas coisas mais urbanas, que não tinham a substância de que uma pessoa que trabalha com o corpo precisa para se satisfazer. Então, eu cresci com isso. E sempre me recusei a fazer pão alentejano porque nada se assemelhava à memória que tinha do pão alentejano. É uma armadilha da mente: as pessoas com quem eu o comia já não estão cá… é um contexto gigantesco que já não existe”, observa. “Tentava, não conseguia; tentava, não conseguia. Seis anos a tentar sem conseguir. Pelo menos sem conseguir aquilo que queria.”

Portanto, quando lhe pediram para fazer pão alentejano para um novo restaurante, foi peremptório: “Pão alentejano, não faço”. Mas o pedido vinha de Nuno Mendes, um dos chefs portugueses de maior reconhecimento nacional e internacional, que estava a preparar-se para abrir o Santa Joana. Insistiu, insistiu, e Paulo acabou por pôr as mãos na massa. “Um dia fiz. Fiz uns testes e disse: ‘Vou mandar-vos o que tenho. Mas esqueçam, isto não é nada’.” Não é difícil adivinhar a continuação: “Eles gostaram do pão e começaram a pedi-lo. Mas em quantidades pequenas, o que não me compensava. Não é eficiente fazer dez pães. Tenho que fazer uma quantidade que, pelo menos, encha uma fornada. Porque, por exemplo, ele tem uma cozedura específica, completamente diferente de todos os outros pães, e queria que se fizesse simulando um forno a lenha, que nós não temos. Então, comecei a fazer pão a mais e punha a vender ali. Para mal dos meus pecados, as pessoas começaram a gostar também. Agora vendo mais desse do que de outros pães, aos quais as pessoas eram extremamente fiéis. E eu, pronto, tive que viver com a realidade, não é?”

Massa Mãe
Rita ChantreA nova padaria da Massa Mãe

No entanto, o compromisso de Paulo Martins com o rigor dos processos, e o amor que tem à arte ancestral da padaria, impelem-no a pôr em causa o próprio trabalho: os clientes até podem gostar, mas “aquilo não é um pão alentejano”. “Um pão alentejano é feito com isco, não é com massa mãe”, explica. “O alentejano e os pães tradicionais, de fermentação natural, utilizam literalmente um bocado da massa do pão anterior. E é isso que fazemos com este alentejano. Essa parte é igual. A parte em que complicamos um bocado é a de levar um alentejano ao frio, para lhe dar umas características que o alentejano normal não tinha”, revela. “Para mim era muito mais fácil fazer um pão que fosse cozido no próprio dia. Ou feito à noite e cozido de manhã, sem ter que ir ao frio. Era menos tempo e a margem de erro era muito menor. Para ir ao frio, tem que ir no ponto certo da fermentação, depois tem que sair, esperar de fora, tem que descansar, tem que ser moldado novamente…” Para quê? Para lhe dar mais cor, uma crosta estaladiça (orgulho do padeiro) e durabilidade.

Massa Mãe
Rita ChantrePaulo Martins no armazém da Massa Mãe

Resumindo, Paulo melhorou o processo do pão alentejano e melhorou o resultado. A prova de que a única (e inglória) batalha que está a travar é com a sua memória é ele próprio a oferecê-la logo a seguir, quando diz que a industrialização do pão tentou padronizar o pão alentejano e que esse padrão – qualquer padrão – não corresponde à realidade de outrora. Sem acesso aos conhecimentos técnicos e científicos hoje ao nosso dispor, refere, antigamente cada padeiro produzia um pão diferente. O processo até podia ser idêntico, mas os pontos de fermentação e a interferência de factores externos, deliberados ou não, faziam com que não existisse um único pão alentejano mas muitos. Mesmo o acesso ao trigo e a moagens mais tradicionais foram se fazendo mais difíceis, o que mudou tudo. Bem a propósito, isso é exactamente o que Paulo tem vindo a tentar proteger desde que abriu a Massa Mãe.

Paulo percorre o país de lés-a-lés, se for preciso – e acaba sempre por ser. Na sua busca interminável pelos melhores cereais, pelas melhores farinhas, pelos melhores barbela, há sempre mais um para descobrir e testar. É como se estivesse a cartografar e a historiografar a produção nacional. Paulo explica que um trigo barbela difere consoante o local onde é cultivado. Têm “terroirs diferentes, químicas diferentes”. Do Algarve para Trás-os-Montes, nota, podem variar de 9% para 11% em glúten. “Mais ninguém está interessado nisto”, diz, sublinhando que não há outro retorno nesse trabalho de investigação do que a sua satisfação pessoal. Mas não é bem assim. O pão que se encontra na Massa Mãe é devedor desse investimento, desse compromisso de honra, que este padeiro põe em prática.

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Rita ChantreO moinho da Massa Mãe

Há também um lado de conservação da biodiversidade que vai além da produção agrícola e da variedade de cereais. Paulo participa neste momento num projecto de conservação do tartaranhão-caçador, uma ave de rapina outrora abundante em Portugal e hoje em risco de extinção, que nidifica em searas de cereais antigos que não têm “interesse para a fileira da panificação convencional”, diz. “O nosso papel é incentivar os produtores a não deixarem de cultivar esses cereais (é uma tendência), comprando-lhes o cereal a preço justo para moermos e produzirmos pão de excelente qualidade.” A moagem é ele próprio quem a faz, porque na nova e mais ampla Massa Mãe conseguiu finalmente montar o moinho que comprara ainda na Conde de Almoster, mas para o qual não tinha espaço nessa loja. O objectivo é, precisamente, dar uso a estes cereais, uma vez que as reduzidas quantidades que deles são produzidas os tornam desinteressantes para outros negócios.

Massa Mãe
Rita ChantreNa Massa Mãe podem ser vendidos até 300 pães por dia

Com mais oito pessoas a trabalhar com ele nesta segunda vida da Massa Mãe, o único problema de Paulo é o tempo (“Eu acabo de vir de uma semana de férias, a minha segunda semana de férias em sete anos. Não tinha um dia de folga desde Agosto”, revela-nos às tantas). Além dos clientes ao balcão, a padaria vende para vários hotéis e restaurantes. A quantidade de pão que sai da Massa Mãe tem vindo consistentemente a aumentar, mas Paulo garante que não faz concessões. “A produção aumentou, mas o processo é escrupulosamente igual ao primeiro dia.” Querendo dizer que não se acelera o período de fermentação, nem se corta no tempo de frio, muito menos se “corrigem” farinhas.

A Massa Mãe chega a vender 300 pães por dia. E toda a gestão tira a Paulo o tempo que precisaria para levar tudo ainda mais longe. “Uma das coisas de que tenho mais dificuldade em prescindir é a capacidade de desenvolver produto. Gostava de o estar a fazer a 100%. Ou pelo menos 75%. Tenho ideias absolutamente loucas. Provavelmente muitas delas completamente falhadas, mas vou tentar”, sublinha. “Para fazer coisas novas, sem estar agarrado ao Instagram a ver o que estão a fazer em Copenhaga, Nova Iorque, Londres ou Berlim – que é o que quase toda a gente faz. É assim na pastelaria, é na cozinha, é em tudo. Nós somos seguidistas. Não somos líderes. Quase toda a gente é, a verdade é essa. E eu tenho ideias muito loucas para concretizar, mas depois não tenho tempo.”

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Rita ChantreA zona de frio da Massa Mãe

Paulo Martins, 50 anos, passou muito tempo fora do país. Trabalhou em cozinhas de Londres, onde começou a fazer pão no conceituado Hereford Road, e de Nova Iorque, onde curiosamente aprendeu a fazer pastéis de nata. Pelo meio, chegou a trabalhar em Lisboa, no Eleven. Mas não tardou a perceber que não queria trabalhar como cozinheiro, que o que queria mesmo era fazer pão. Ficou obcecado pelo tema – e o resultado não tardou. “O Hereford Road tinha uma montra onde se punham os peixes, os leitões já cozinhados, e também o pão. Isto aconteceu várias vezes…” Interrompe. “Estou até a arrepiar-me um bocadinho. Tenho de parar, espera aí. Isto é um bocadinho…” Continua: “Havia pessoas que entravam e conheciam o meu pão e diziam: o Paulo está a trabalhar hoje. Foi muito marcante”. Isto porque ele não era o único no restaurante com o pão a seu cargo. Havia outros. “O pão é feito pelo Paulo hoje. Foi o melhor elogio que ouvi na minha vida.”

Massa Mãe
Rita ChantreAs broas saídas do forno

O reconhecimento, agora, acontece em São Domingos de Benfica – e não faltam clientes, entre os quais chefs e gastrónomos, a jurar a pés juntos que é aqui que se vende o melhor pão de Lisboa. Aliás, é difícil voltar atrás depois de o provar. Paulo conta que muitos dos seus clientes já não conseguem comer o pão industrializado a que nos habituámos nas últimas décadas. “Isto é muito presunçoso”, ri-se. “Mas a verdade é que acho que é o nosso corpo a fazer essa selecção. Não é só a parte gustativa, a parte sensorial. É o nosso corpo a dizer: não, isto é muito mais saudável.” Não é um assunto por que puxe muito, frisa, mas fala do que sabe. “Quando me perguntam, digo sempre que não sou médico. Há pessoas que se julgam um bocadinho – quem tem Google julga-se médico, não é? Mas é uma coisa que, pela experiência que eu tenho e do que as outras pessoas partilham comigo, nota-se muito mesmo. A maneira como o corpo reage a um [pão] e a outro [é diferente]”, diz. “Acho que é o corpo a informar-nos sobre as decisões certas.” 

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Rita ChantreO bacão em ataija da Massa Mãe

Na Massa Mãe, nas prateleiras por detrás do enorme e belíssimo novo balcão em pedra (é ataija), uma decisão certa pode ter a forma de um pão de trigo tradicional com barbela (5,25€/unidade), de um espelta (meio integral – 6,50€/unidade), de um quatro sementes (trigo e centeio – 5,85€/unidade), de um alentejano (4,45€/unidade), de um aveia (porridge – 5,70€/unidade), de um trigo com azeitona (3,95€/unidade) ou de uma broa de milho amarelo (5,50€/quilo). Mas também de uma ciabatta (5,35€/quilo), de uma baguete (trigo barbela – 2,15€/unidade) ou de uma focaccia, que há várias diariamente (11,90€/quilo). Sim, porque aqui estamos numa padaria tradicional, mas isso não é sinónimo de paroquial. Nem cá venham com purismos nacionais (nem com estrangeirismos desnecessários). A trincheira deste padeiro é uma e está muito bem definida: “Um pão bom é um pão bom.”

Estrada de Benfica, 232 AB (São Domingos de Benfica). Ter-Sex 8.30-19.00, Sáb 08.00-13.00, Dom 08.00-13.30

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