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Almada dá palco às más notícias que não vêm no jornal

Escrito por
Miguel Branco
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A nova criação da Companhia de Teatro de Almada é um texto e encenação de Rodrigo Francisco. Fenda, que se estreia esta sexta-feira no Teatro Municipal Joaquim Benite, é o declínio do jornalismo e das relações humanas.

Sentada na cama, Catarina come arroz de bacalhau à meia-noite e meia. Imaginamos que não tenha tido tempo para o fazer antes. Leva umavida madrasta, de jornalista prestigiada, de rosto da informação e do comentário, sem horários, praticamente sem privacidade. E Fenda – o novo espectáculo da Companhia de Teatro de Almada, com texto e encenação de Rodrigo Francisco, que nunca havia levado a palco um texto de sua autoria – joga muito com o binómio privacidade/espaço público.

Através de uma cenografia (de Jean-Guy Lecat) rapidamente mutável, as mesmas paredes e diferentes perspectivas dão-nos a sala de Catarina ou o estúdio onde comenta mais um naufrágio ao largo de Lampedusa. Há câmaras de televisão e projecção de vídeo, que servem para nos deixar ver melhor. Pontos de vista para um mundo onde não se está bem, como sublinha Rodrigo Francisco. “Acho que passa por este texto um certo mal-estar, que é mais ou menos comum a nós todos, pessoas que nos preocupamos com estas coisas, a certa altura na conversa entre a jornalista e o patrão ela diz: ‘A sensação que eu tenho é que isto que andamos a fazer já não faz sentido, vem aí outra coisa’. Essa outra coisa que vem aí, que tem que ver com a ascensão dos populismos, é algo que ainda não entendemos mas que nos faz sentir esta sensação de que vivemos uma época que acabou e que vem aí uma coisa que não nos parece lá muito saudável, olhando para o mundo”, explica.

É um olhar para o mundo, talvez um mundo onde o jornalismo está em profunda crise ou já é mais entretenimento. Catarina é o arquétipo perfeito: fuma cigarros atrás de cigarros, tem aquele mau feitio implacável, é adorada pelo patrão e aparentemente bandido Simão da Veiga (líder da estação televisiva para o qual trabalha), tem uma relação complexa com o filho e deixou a mãe morrer num lar, aonde talvez nunca tenha ido. Porventura porque em Fenda o mais seguro é defendermo-nos de certezas absolutas. Sabemos que há o tal mal-estar, mas quanto ao enredo, quanto à intimidade que quem a rodeia parece querer descarnar, só podemos conjecturar: “Nunca se chega a saber o que é que se passa aqui, que é a sensação que tenho quando leio muitas notícias em jornais, sinto sempre que há uma parte da informação que me está a ser sonegada e que nunca se chega a apurar verdadeiramente os factos”, explica Rodrigo Francisco.

E o mal-estar, parasita, não nos larga, nem a já habitual resignação de ver que, mais uma vez, ganharam os mais fortes, como confirma Rodrigo Francisco: “É um bocado isso, é um bocado a metáfora do país. Esta mulher nasce antes de 74, tem acesso a uma série de coisas a que a sua mãe não teve, passou por uma fase de abandono das suas origens para embarcar numa certa ascensão social e, aparentemente, essa ascensão deu-se, mas que preço é que ela teve que pagar? E depois: pode ascender até certo ponto. É verdade que o país mudou, é verdade que o elevador social funciona, como a ala mais liberal diz, mas funciona até certos andares”.

Teatro Municipal Joaquim Benite. Qui-sáb 21.00. Dom 16.00. 13€.
Texto e encenação Rodrigo Francisco
Com Adriana Melo, Carlos Fartura, Diogo Dória, João Farraia, João Tempera, Maria João Abreu, Mina Andala e Pedro Walter

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