[title]
Havia requisitos a cumprir. Os candidatos deveriam ser artistas nacionais a residir em Portugal, as obras não poderiam ultrapassar a combinação de 1,80 x 1,28 metros e deveriam cingir-se à área da pintura. João Vieira, artista transmontano, autodidacta, progressista e membro do grupo do Café Gelo, obedeceu aos dois primeiros. Chegado ao terceiro, talvez já fosse demais. Arriscou, e daí saiu "Café Kafka", obra que haveria de figurar no café histórico A Brasileira de 1971 a 2024 (e lá irá regressar), como outras nove que estão a ser restauradas numa empresa privada.
Audaz, a peça maioritariamente feita em chapa acrílica (PMMA) foi a única a pedir investigação científica, precisamente pelo material-base escolhido. Com o acrílico, moderno e na altura pouco acessível, o artista podia exprimir fluorescências, luminescências e transparências (sempre dentro do seu característico abstraccionismo), mas, acima de tudo, afirmar uma clivagem com o conservadorismo da altura. "Ele mesmo aprendeu a fazer, a manipular. Era uma pessoa muito curiosa, que ia à fábrica ver como se fazia, se fosse preciso", conta Sara Babo, professora do departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, na Caparica, onde a obra ficará até Setembro.
Mas talvez João Vieira não soubesse (ou não quisesse saber) que o material, apesar de se revelar quimicamente estável, determinaria "um desafio" para o restauro. "Risca muito facilmente e sofre muita abrasão", nota a coordenadora do projecto da FCT, Susana França de Sá. Especialmente quando, sobre ele, recaem 53 anos de gorduras, tabaco, excrementos e outros detritos (a peça estava junto ao elevador da cozinha d'A Brasileira). Neste processo de envelhecimento, o PMMA perdeu o brilho e a cor e a ciência ganhou o problema de os recuperar, pelo menos em parte, e sem imprimir danos à matéria-prima.

O que Francisca Lima, autora de uma tese de mestrado no âmbito deste projecto, está a fazer desde Janeiro contempla várias etapas. Na primeira, que começou em Setembro do ano passado, foi preciso investigar e enquadrar a obra e o perfil de João Vieira. Depois, documentar o estado em que o material chegou à Caparica e, de seguida, investigar na literatura os métodos disponíveis para restaurar este tipo de material. Foi aqui que surgiram os obstáculos. "Os géis usados até agora eram seguros mas pouco eficazes", explica Susana França de Sá. Quando não há, cria-se.
Depois de criados os novos compostos, a equipa testou-os em "materiais de sacrifício" e avaliou os resultados com recurso a microscópio, colorímetro e polariscópio, para perceber se haveria "stress interno" ou outras alterações ao nível molecular. Até ao final deste ano, e por causa da obra de João Vieira (e dos fumadores d'A Brasileira), a literatura internacional terá agora no que se basear quando encontrar obras em PMMA.
Gel e basta
Na prática, aplica-se uma placa de gel (mistura de agar-agar com um quelante capaz de capturar os iões metálicos) sobre cada placa, como mostra a equipa à Time Out, no laboratório. O que de sai do acrílico cortado em 1971 parece vindo do exaustor de uma cozinha industrial. "Mesmo nós ficámos muito surpreendidas da primeira vez. Até chegámos a achar que esta placa tinha sido pintada de preto. Só depois percebemos que era roxa e que a camada em cima era de sujidade", explica a coordenadora do projecto. Gelatinosa, a "folha" é aplicada depois de aquecida e tem o dom de absorver detritos sem se colar à superfície e sem riscar.

Numa segunda fase, aplica-se outro gel (transparente quando limpo, castanho escuro no final), moldado em bolas e aplicado com a mão. Aderente, mas não em demasia, retém as impurezas finais, mais uma vez, sem deixar marcas.
Prevê-se que o restauro termine em Setembro, altura em que a peça deverá regressar ao Chiado, primeiro para o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) e depois para A Brasileira. O mesmo deverá acontecer às restantes nove obras que marcaram a vida do café histórico durante mais de 50 anos (a primeira vaga chegou ao espaço há 100 anos, em 1925, mas foi substituída pelas da década de 1970) e que estão a ser recuperadas.

O pintor letrista
O artista João Vieira (já agora, pai de Manuel João Vieira) virou-se, durante décadas, para materiais como o poliuretano rígido, espumas flexíveis ou tinta de automóveis, com os quais fazia experiências e assemblages. Quando a arte estática não lhe chegava, entrou nos happenings e na performance ("acções-espectáculo", assim as chamava), tornou-se encenador e cenógrafo, tendo passado pelo teatro e pela RTP, onde avacalhou com frequência, no melhor sentido.

Nos anos de 1950, em Paris, Vieira ajudou a fundar o Grupo KWY (as letras que não entravam no alfabeto português), tendo aprofundado durante anos o interesse pela pintura letrista. Junto às obras de António Palolo, Marcelino Vespeira ou Carlos Calvet, as letras dificilmente decifráveis de "Café Kafka", "pintadas" à sua maneira, manterão a atitude vanguardista de sempre, mesmo em 2025.
🏡 Já comprou a Time Out Lisboa, com as últimas aldeias na cidade?
🏃 O último é um ovo podre: cruze a meta no Facebook, Instagram e Whatsapp