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Esta carta foi originalmente publicada na revista Time Out Lisboa, edição 673 — Primavera 2025
Há 12 anos, o então director desta revista, João Cepeda, atirou-me aos lobos. “Vais fazer a crítica do Belcanto.” Eu fui e a partir daí seguiram-se mais de 650 artigos, um por semana.
Desde 2013, tem sido um festim, nem sempre delicioso, quase sempre pouco saudável. Comi mal, comi bem, comi muitas vezes assim-assim. E as minhas análises tornaram-se mais negras: pré-diabetes, colesterol alto, tensão idem.
Nada disso beliscou, todavia, a sensação de extraordinário privilégio.
Nunca fui tão feliz, raramente me senti tão útil a tantas pessoas.
Ao longo destes anos, visitei de forma anónima michelins e tascas, sempre com o mesmo objectivo: avaliar se pediam um preço justo pelo serviço que prestavam.
Cometi erros, muitos, fiz apreciações erradas. Houve restaurantes a que dei 5 estrelas que me desiludiram, tempos depois. E outros com os quais fui cáustico que noutro contexto, noutro dia, viriam a revelar-se belíssimos.
Sucede que isto não é como escrever sobre livros ou filmes, ou quadros. Os restaurantes e a comida mudam de dia para dia. Às vezes, mudam do almoço para o jantar, mudam se lá vamos às 12.00 ou às 13.00.
Disse muitas vezes bem e muitas vezes mal. Por vezes, o fervor da desilusão fez-me usar palavras ácidas. Pus pessoas em cheque, pus os seus negócios em cheque.
Nem todos reagiram bem. Um dos comentários que mais ouvi foi: “Não era preciso teres escrito isso assim”. Ou então: “Podias ter tido uma abordagem mais construtiva”.
Sucede que uma crítica não é um relatório, não é um estudo, não é uma auditoria, não tem de ser construtiva nem destrutiva. É um género jornalístico paraliterário, meio crónica, meio reportagem. É um texto sobre o que aconteceu no restaurante ou sobre o que ele pareceu ao crítico, quase sempre depois de mais do que uma visita, tantas vezes em muitas.
Uma crítica gastronómica é sobre a verdade, sem pós, nem pozinhos, e sobre justificar porque se gosta ou desgosta. E é sobre escrita, a mais apelativa que se consegue. No limite, resume-se a isto: dar prazer ao leitor, dar boas dicas ao consumidor.
Em 12 anos, nunca nenhuma conta foi paga pelos restaurantes sobre os quais escrevi, um couvert que fosse, nunca aceitei benesses de chefs e procurei sempre manter com eles uma distância defensiva.
Grande parte julgo que respeitou essa postura, mesmo se foram criticados – e quase todos o foram, sobretudo quando se meteram em consultorias perigosas ou iludiram os clientes com conteúdos comprados a influencers e a pseudo jornalistas.
Vivemos tempos desafiantes, caro leitor. Nunca tivemos tanta informação sobre o que consumir, sobre os restaurantes onde ir, mas nunca essa informação foi tão frágil, tão mascarada, tão difícil de confirmar.
Os chefs não serão os principais culpados, embora muitos se tenham aproveitado de circunstâncias conjunturais, ligadas ao turismo e aos expatriados – é um negócio difícil, com margens de lucro apertadas e muitos problemas para resolver, todos os dias.
Para além da consistência do beurre blanc ou do ponto do bife, os chefs e donos de restaurantes têm de gerir pessoas, quase sempre em tensão. As cozinhas são bombas prestes a explodir; as salas têm de lidar com todo o tipo de clientes, alguns difíceis. Os horários são uma prova de fogo para a sanidade mental.
Fui cáustico com alguns cozinheiros e chefs. Mas o meu apreço pela profissão e pela comunidade é imenso.
Tantas vezes me fizeram feliz ao longo destas 650 críticas. Tantas vezes senti o seu amor pelo que fazem. Tantas vezes me salvaram de dias tristes.
Hoje, mais do que nunca, tenho a noção disto: os melhores cozinheiros e os melhores chefs são terapeutas, amigos, artistas. A sua função na sociedade é inestimável.
Mas também há os embustes. Cada vez mais. Apanhei alguns melhores no marketing do que nos fogões, vigaristas à procura de estatuto social.
Quando os critiquei, por vezes, recebi ameaças. Algumas veladas, como quando me enviaram mensagens anónimas a sugerir que olhasse para trás na rua.
Outras ostensivas, como a de um empresário do sector, ao dizer, num almoço com influencers, que o crítico da Time Out um dia ia aparecer na bagageira de um carro.
Outras legalistas, com recurso a direitos de resposta nas páginas da revista (duas ou três vezes, que me lembre).
Quanto a processos em tribunal, só por uma única vez alguém recorreu à justiça. O chef em causa sentiu-se ofendido com uma crítica – uma das mais mordazes mas também das mais apropriadas – e interpôs uma acção judicial ridícula e intimidatória.
Quando fui a tribunal defender-me, já não era Alfredo Lacerda quem ali estava, mas sim eu e a directora desta revista.
Como saberão, este nome é um pseudónimo. Eu não sou Alfredo Lacerda. A prática de se escrever com outro nome é usada pela marca Time Out em todo o mundo, como forma de o crítico se manter anónimo. Mas nunca me escondi nisso, nunca escrevi algo que não pudesse assumir com o meu nome.
A procuradora do Ministério Público e a juíza despacharam a queixa do ofendido de forma exemplar, antes do processo sequer chegar a julgamento – a bem da liberdade de expressão e do livre exercício da crítica.
Alfredo Lacerda resistiu. Até agora.
Restamos poucos neste ofício: o meu amigo Fortunato da Câmara, no Expresso, e mais um ou dois, talvez. Agora, chegou a minha vez de me despedir.
Para os chefs e restauradores, a minha consideração e respeito. Para os leitores, o meu obrigado.
Não comam de ardósias. Evitem croquetes de alheira. Desconfiem de restaurantes “by chef não sei quê”. Digam não aos restaurantes de "tapas". E às pílulas de aminoácidos do Elon Musk.
De resto, bom apetite.
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