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De mãos sujas e forno quente: quando a arte se faz de cerâmica

Dividida entre as artes plásticas e a decoração, esta não é uma matéria fácil de encaixar. Artistas, galeristas e curadores falam sobre a frágil, mas promissora, condição da cerâmica contemporânea.

Mauro Gonçalves
Escrito por
Mauro Gonçalves
Editor Executivo, Time Out Lisboa
Atelier de Bela Silva
Rita Chantre
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 673 — Primavera 2025

A antiga casa de veraneio da família Albuquerque é agora um museu. Lá dentro, estão mais de 2500 peças de porcelana chinesa de exportação, a colecção de uma vida para Renato, empresário brasileiro do ramo da construção civil, hoje com 97 anos. Ao lado de tesouros centenários vindos do Oriente, a Albuquerque Foundation, inaugurada em Fevereiro, em Sintra, deixou espaço para a cerâmica contemporânea.

Até ao final de Agosto, é o norte-americano Theaster Gates quem ocupa a galeria reservada às exposições temporárias. “Houve um desejo de colocar luz sobre muitas questões que estão implícitas na colecção e que são extremamente contemporâneas. O Theaster Gates foi escolhido como artista inaugural, exactamente porque as questões raciais, sociais, económicas e até de gentrificação estão totalmente presentes no trabalho dele”, começa por comentar Jacopo Crivelli Visconti, director do novo museu.

Para Sintra, Gates concebeu uma instalação chamada A mão sempre presente, vários metros quadrados de azulejo em barro negro – em contraste com a brancura e pureza da porcelana –, sobre os quais os visitantes podem caminhar. “Nem sei se ele realmente pensou em quão perfeita essa peça é para inaugurar essa programação. É uma peça produzida na Ásia, por um artista que, mesmo que seja totalmente disruptivo e crítico das estruturas de poder, é ocidental e de sucesso no panorama da arte contemporânea. Depois, essa peça viajou até Portugal, fazendo exactamente o mesmo percurso marítimo que a maioria da colecção fez”, continua.

Fundação Albuquerque
Francisco NogueiraFundação Albuquerque

No primeiro museu da Grande Lisboa dedicado em exclusivo à cerâmica, passado e contemporaneidade dialogam para construir um entendimento do papel histórico desempenhado por esta matéria, mas também do que ela pode representar hoje nas mãos de uma geração de artistas. “A gente vem num momento muito especial para a cerâmica contemporânea. Poucas vezes, no passado, teve tantos artistas trabalhando com cerâmica, vindos de contextos e de trajectórias muito distintas”, reflecte.

O interesse por parte de artistas e galerias subiu de tom e continua a reforçar a cerâmica no quadro da arte contemporânea internacional. Para Maribel Lopez, directora da Arco, o barro é um dos materiais que, com as respectivas técnicas, está a voltar em força pela mão de uma nova geração de autores. Fala por experiência própria, com duas feiras de arte a acontecer anualmente – a próxima é em Lisboa, entre 29 de Maio e 1 de Junho, e vai contar com 82 galerias de 17 países. “Sem dúvida que a cerâmica tem aumentado a sua presença nos últimos anos. À semelhança da tecelagem ou do vidro soprado, entre outras práticas que têm origem no saber-fazer tradicional, tem sido usada pelas novas gerações como forma de se conectarem com o passado”, refere Lopez.

Também Jacopo Crivelli Visconti coloca a tónica na materialidade. “Para muitos artistas, de gerações ainda mais jovens do que Theaster, tem essa questão de voltar um pouco às origens, de fugir da digitalização e da proliferação de imagens descartáveis que a gente tem no nosso dia-a-dia e voltar a uma produção que é, de facto, lenta. É impossível produzir cerâmica em tempos tão rápidos como a nossa sociedade parece pedir em muitas outras áreas”, conclui.

Cerâmica portuguesa: os mestres do século XX

Lado a lado com a pintura e a escultura, Maribel Lopez garante que não há margem para olhar para a cerâmica como uma arte menor. Convicção partilhada por Nuno Lopes Cardoso, embora o conhecimento do contexto português leve o galerista a traçar um cenário menos feliz. “De certa forma, há sempre um preconceito. A cerâmica é tida sempre como uma arte menor. Ou seja, como qualquer coisa que está mais no campo das artes. Mas essa é uma discussão que não faz absolutamente sentido nenhum, inclusivamente a partir desses anos”, afirma.

Os anos de que fala são as três décadas de ouro da cerâmica portuguesa, entre os anos 40 e 70. O interesse e a curiosidade pela produção artística, mas também industrial, desta época, levaram o arquitecto a abrir uma galeria. A Objectismo existe desde 2013 e é um espaço destinado à promoção da cerâmica portuguesa de autor e industrial de meados do século XX, com a devida atenção para com “grandes mestres” como Manuela Madureira, em destaque no mês de Abril, Artur José, Júlio Pomar e Laranjeira Santos, entre outros.

Nuno Lopes Cardoso, fundador da Objectismo
Rita ChantreNuno Lopes Cardoso, fundador da Objectismo

“Foi o arranque da cerâmica contemporânea em Portugal, muito com o apoio das fábricas, que abriram os seus ateliers para que os artistas pudessem trabalhar. Isso criou condições únicas numa altura em que a cerâmica se estava a tornar um elemento importante na actividade cultural”, afirma Nuno. Porém, um território pouco explorado. Se a cerâmica dividiu protagonismo com a pintura e a escultura nos salões de arte dos anos 60, meio século depois, era escassa a pesquisa e a divulgação daqueles autores. A Objectismo veio cumprir este papel e prepara-se agora para dar mais um passo na valorização deste suporte artístico – organizar, anualmente, uma exposição dedicada a novos autores de cerâmica contemporânea. Para Nuno, um exercício curatorial exigente, que dependerá sempre da separação da cerâmica enquanto arte e da cerâmica do domínio utilitário.

Nos dois últimos anos, esteve na Ceramic Brussels, evento que se apresenta como a primeira feira de arte internacional dedicada à cerâmica e que já tem uma terceira edição marcada para Janeiro de 2026. Interessa-lhe, sobretudo, ver o que está a ser feito lá fora. “Tenho muito claro o que se está a passar a nível internacional e, infelizmente, vamos atrasados. A maior parte dos trabalhos que me aparecem aqui continuam fechados numa finalidade utilitária. A cerâmica está completamente na moda. Muita gente faz cerâmica, mas pouca gente é artista ceramista, ou seja, leva a vida a fazer cerâmica de autor”, admite.

Entre a arte e o artesanato

O purismo de Nuno Lopes Cardoso não é a única forma de encarar a cerâmica contemporânea. Dentro do separador que é a criação, há quem veja espaço para diferentes manifestações. Arte contemporânea, arte popular ou artesanato? Para Felipa Almeida, coleccionadora e curadora, tudo se mistura no desejo de conhecer mais sobre a história e os costumes, mas também sobre a habilidade técnica e o rasgo criativo. “Diria que o meu trabalho foi sempre muito transversal, sem grandes fronteiras entre a arte que está nos museus, a arte no sentido académico, a arte popular e o artesanato. A forma como me relaciono com as peças é bastante horizontal. E acho que este espaço mostra isso – tudo acaba por conviver de forma bastante natural porque eu própria não vejo uma hierarquia. Tanto gosto de ir a uma olaria tradicional como de entrar no atelier de um artista. Para mim, são as emoções que sinto com as peças e não o contexto”, começa por esclarecer.

O espaço é um apartamento-estúdio em Campo de Ourique, onde livros e barro se cruzam. À veia de antropóloga, que a faz partir no encalço tradições de várias regiões do país, junta uma colecção pessoal cujas proporções não revela, peças que vende e outras que desafia os artistas a criar. O que começou por ser um fascínio íntimo pelo material evoluiu para um conhecimento vasto sobre a cerâmica portuguesa e um impulso criativo dado a uma nova geração de criadores. “Obviamente, também sou sensível ao que se faz hoje, não estou só virada para o passado. O que gosto de fazer é misturar as peças antigas e as novas, é onde vou buscar inspiração para os temas das minhas exposições”, continua.

Atelier Felipa Almeida
Filipa Pinto da SilvaPeças da colecção de Felipa Almeida

A observação vai muito além destas paredes. Nos últimos anos, Felipa tem visto a cerâmica crescer na oferta das galerias e feiras de arte. Uma predisposição para a valorização do trabalho em barro, que sente na pele sempre que abre as portas do atelier para uma pop-up temática ou quando colabora em mostras noutros locais. “Há essa aceitação de que a cerâmica não tem de estar ligada a objectos utilitários e também dos preços que acompanham a complexidade e a delicadeza das peças, embora isso seja algo progressivo”, resume.

A próxima exposição de Felipa Almeida inaugura em Junho, na galeria Plato, em Évora. Duas dezenas de artistas – metade a colaborar com a curadora pela primeira vez e nem todos portugueses – estão a ser desafiados a criar peças a partir de um mote lançado pela curadora. Depois de sereias, astros e pratos falantes, o ponto de partida será um objecto que faz parte da olaria tradicional portuguesa, o moringue. “Acho que a cerâmica tem atraído algumas pessoas para Portugal e isso está a fazer com que haja um melhor conhecimento do nosso património. Ainda há muito que está por conhecer, mas o respeito pela nossa tradição é cada vez maior.”

Novas mãos para moldar o barro

Foi nos laboratórios de escultura da Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, que Ana Leonor Pinto se apaixonou pela cerâmica. Começou pela pedra – “um erro gigante” –, mas acabou por perceber que era no barro que as mãos atingiam a plena realização. Deu-lhe várias voltas, aprendeu que é uma matéria difícil de dominar e, já no mestrado, teve uma ideia: aliar a arte à pastelaria. “Foi muito simples. Olhei para um bolo, destes vintage que estão muito na moda, e pensei: e se isto fosse em barro? Comprei as mesmas ferramentas que se usam na pastelaria e fui ajustando, até chegar a esta técnica. Tem sido o meu trabalho nos últimos seis meses”, resume a jovem autora.

Peças de Ana Leonor Pinto
DRPeças de Ana Leonor Pinto

O trabalho, que já esteve em exposição na capela da faculdade, segue uma lógica simples – trabalhar o barro usando o saco de pasteleiro dos cake designers, num processo que Leonor tem partilhado nas redes sociais. Mais do que peças visualmente (e comercialmente) apelativas, a exposição permitiu-lhe trazer à tona o conceito por detrás da doçaria. Nem todos os bolos estavam impecavelmente decorados sobre a mesma – alguns surgiram como que a derreter, outros estavam somente esborrachados no chão. “Acaba sempre por haver uma crítica social nesta contraposição do belo e do arrojado com o decadente e o degradante. E os bolos foram o elemento perfeito. São doces, são a distracção perfeita, mas ao perto não têm assim tão bom aspecto.

Entre o trabalho mais conceptual e as pequenas peças que produz para vender, aos 22 anos, Leonor não tem dúvidas quanto ao futuro: quer continuar a sujar as mãos. “No primeiro dia da licenciatura, tive logo professores a dizerem que cerâmica não era escultura, que era para fazer pratos e canecas. Existe muito esse preconceito de que é apenas artesanato. Mas de certa maneira, eu e outros alunos estamos a conseguir mudar essa mentalidade.”

Noutra fase da vida e da carreira, Caetano de Oliveira também percorreu um caminho até se encontrar com esta forma de expressão artística e assumi-la, contornando o preconceito. Estudou nas Caldas da Rainha, onde a cerâmica está ao virar de cada esquina, mas só acabaria por abraçar a técnica, em exclusivo, depois do percurso académico. Até lá, mostrou alguns sinais de que as mãos estavam como que predestinadas a trabalhar o barro. “Fazia pintura e utilizava sempre a figura do azulejo biselado, representado na tela. Ainda na faculdade, tive oportunidade de experimentar a oficina de cerâmica. Ou seja, de passar para o 3D aquilo que estava a fazer a duas dimensões. Percebi logo que aquilo me tinha tocado e pus na cabeça: assim que acabar o mestrado, vou querer saber mais sobre cerâmica.”

'50 Cravos', de Caetano de Oliveira
DR'50 Cravos', de Caetano de Oliveira

Dito e feito. Em 2014, já com o diploma de artista na mão, tornou-se aprendiz de roda de oleiro num pequeno atelier nos Anjos. O gosto foi crescendo, mas, apesar da realização, Caetano levava uma vida dupla. “Senti que era aquilo, mas eu vinha de um território onde há todo um elitismo e um preconceito em torno das artes menores, como lhes chamam. Então, fazia cerâmica quase às escondidas. Foi assim durante anos – acabei por ter a minha própria roda e aperfeiçoar o que aprendia nas aulas, enquanto fazia pintura. Era assim que me apresentava como artista. Fiz exposições, individuais e colectivas, com pintura, mas com pintura que falava de cerâmica.”

A pandemia veio mudar tudo. O isolamento fê-lo pôr a carreira em perspectiva e começar a dar workshops trouxe-lhe a validação de que precisava. Voltou as costas às artes plásticas e dedicou-se à produção de objectos utilitários. Hoje, de pazes feitas com a academia, assume-se como um artista plástico que tem na cerâmica o principal veículo da sua criação. No caminho, deparou-se com uma questão: será que a função exclui o valor artístico? “Felizmente, hoje já saí desse terreno pantanoso, onde eu próprio pensava que era uma arte menor. Actualmente, é uma forma de comunicar que me aproximou novamente das artes plásticas”, remata.

A sagração desta jornada pessoal aconteceu há um ano, com 50 Cravos, uma peça celebratória de meio século da Revolução de Abril. Outras peças especiais vieram entretanto e com elas o apurar de um estilo próprio – figurativo, ornamental e com laivos de surrealismo. Em Junho, vai participar numa exposição colectiva. Em Setembro, o desafio sobe de tom, com uma exposição individual no Palácio Biester, em Sintra.

Já o caminho de Eva Lé foi diferente. Para ela, a cerâmica foi uma espécie de antídoto para todas as teses sobre funcionalidade que uma jovem estudante de design tem de assimilar. E que acabou por prevalecer. Num atelier, em Moscavide, a jovem autora divide o tempo entre workshops de fim-de-semana, uma forma de ir sustentando a estrutura, e o seu trabalho enquanto autora. “Para ser sincera, não vejo a cerâmica artística como algo oposto à cerâmica decorativa. Tenho estado a tentar uni-las de alguma forma e a criar essas camadas nas minhas peças. E acho que a melhor galeria que elas podem ter é a casa das pessoas”, explica.

Eva Lé
Rita ChantreEva Lé

Nos últimos anos, o trabalho de Eva tem evoluído em crescendo. Falamos, sobretudo, da escala das peças, mas também da complexidade. As experiências com vidrados, as formas orgânicas contrapostas a desenhos geométricos – para ela, a cerâmica de autor é uma forma de materializar sonhos e angústias. É por isso que, em vez de limpas e serenas, as peças que encontramos no atelier são elaboradas e caóticas, mesmo quando não há vestígios de cor.

Uma das últimas peças de Eva Lé brilha agora fora do estúdio. Foi uma encomenda da Cartier para a renovada loja da Avenida da Liberdade. “Gosto que as peças tenham impacto, que tenham alguma grandiosidade”, acrescenta. Outras ficaram e, através da montra, aguçam a curiosidade de quem passa. Escondida de olhares indiscretos está uma pequena mesa de cabeceira. Tudo indica que o próximo empreendimento criativo da artista será juntar cerâmica e mobiliário.

Bela Silva: a beleza do objecto

A cerâmica contemporânea portuguesa não tem apenas um nome, mas poucos competem com o ritmo e o alcance de Bela Silva. Dentro do atelier, os dias da artista são vividos a dois tempos – o do desenho, que é poesia e contemplação, e o da cerâmica, que é força e luta. As duas expressões artísticas convivem lado a lado e num imaginário comum, pautado por espécimes botânicos, pássaros e paisagens naturais. A cerâmica, pela via da tridimensionalidade, apenas se afirma no espaço de outra maneira.

“Na escola, não falavam comigo, porque eu era a ceramista. Ainda hoje, pessoas que só estiveram em Belas-Artes e outras que só passaram pelo ArCo, me apresentam como a ceramista. Eles são os artistas, mas eu, que fiz Belas-Artes, fiz ArCo, fiz mestrado em Chicago, continuo a ser a ceramista. É incrível como o barro te põe um rótulo”, começa por desabafar. Há mais de três décadas que Lisboa não é a base de Bela Silva. Passa a maior parte do tempo em Bruxelas, mas também já viveu em Nova Iorque. Por cá, cruzou-se com os grandes, nos ateliers da Viúva Lamego – Querubim Lapa, Maria Keil, Manuel Cargaleiro, Bartolomeu Cid dos Santos. Ainda assim, a procura de afinidades artísticas e de um lugar onde pertencesse enquanto autora levou-a para o centro da Europa.

Bela Silva
Rita ChantreBela Silva

“Sempre tive dificuldade em encontrar aqui o meu nicho, porque a arte em Portugal é muito conceptual. Sou mais como os belgas e os franceses no gosto pelas artes decorativas. O objecto, para mim, sempre foi uma coisa importante, enquanto aqui, por vezes, foi desvalorizado”, refere. Com a adoração do objecto, vem a primazia do belo. Se na arte conceptual, o texto é tudo, na cerâmica de Bela Silva a profundidade está, muitas vezes, na relação entre a cabeça e o gesto – o génio dita, as mãos e os braços não respondem por si, mas por ele.

No seu atelier da Penha de França, a artista absorve alguma da luz que banha a cidade. A influência no trabalho é flagrante e reflecte-se sobretudo na paleta de cores. Em Abril, um conjunto de peças ganha destaque nas montras da Loja das Meias de Cascais, o cultivar de uma relação com a moda, que vai longa – a mãe desenhava moldes para a confecção de pronto-a-vestir e, muitos anos mais tarde, Bela tornou-se na primeira artista portuguesa a desenhar um lenço para a Hermès.

Hoje, como em toda a carreira, continua a querer tocar outros instrumentos. Fala no vidro e numa possível “residência em Murano”, na tapeçaria flamenga que explorou recentemente. Em Outubro, inaugura uma exposição de desenho na galeria Rui Freire, no Chiado, e uma outra nos jardins do Palácio Fronteira. “Aí é que vou ter que estar em forma, porque são peças de um metro e 80. Dava-me jeito um assistente.”

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