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E se para ir ao teatro não precisasse de sair de casa? Eis o Teatro Quadrado

O projecto Teatro Quadrado encena em casas particulares. Estivemos na última noite da mais recente edição para descobrir como tudo funciona, em cima e fora do “palco”.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Teatro Quadrado
Ju Morelli | Sexta edição do Teatro Quadrado
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 673 — Primavera 2025 

O dia e a hora estão marcados, mas só 24 horas antes é que ficamos a saber a localização. É nessa altura que recebemos uma mensagem com informações acerca de onde nos vamos encontrar com uma das organizadoras, que nos guiará até casa. À partida, é a casa de alguém que não conhecemos e onde nunca estivemos. O caminho vai-se fazendo a pé e pode demorar cinco, dez, quinze minutos – depende do sítio onde nos encontramos, de onde é a casa ou de quantos somos. Quando chegamos à porta do prédio passa pouco das oito da noite. Hoje, estamos na Estrada da Luz, nas Laranjeiras. Antes de entrarmos, dadas as boas-vindas, somos avisados: vamos entrar na casa de um desconhecido e, por isso, devemos cuidar dela como cuidaríamos da nossa. Também devemos tirar o som do telemóvel e não devemos pensar se o que vamos ver é bom ou mau, isso fica para outra altura. Esta noite, o 1.º direito acolhe cinco apresentações e torna-se uma espécie de teatro em ponto pequeno.

É mais ou menos assim que se desenrolam os encontros artísticos do Teatro Quadrado. Em Março, a sétima edição deste laboratório experimental de teatro e performance aconteceu ao longo de seis noites, em seis casas diferentes. A maneira como tudo se organiza é bastante simples. Primeiro, cerca de um mês antes de uma nova edição, são anunciadas as datas, depois é aberto um open call para quem queira ser anfitrião e receber um dia de apresentações em sua casa e, só a seguir, é que são chamados os artistas – todos e quaisquer uns.

Uma casa, muitas artes

“Não há programa de curadoria: qualquer pessoa pode inscrever-se e, enquanto nós pudermos acolhê-las, vamos dizer que sim. Quer seja pessoas com mais ou menos currículo, ou que estão a experimentar alguma coisa pela primeira vez. A ideia é que estes encontros mantenham essa falta de homogeneidade e que operem fora da lógica do bom e do mal e dessa hierarquia de qualidade”, começa por nos explicar Beatriz Catarino, de 24 anos, uma das organizadoras. Só quando o programa está fechado é que abrem as vagas para o público. Este precisa só de preencher um formulário, a entrada é gratuita.

Depois de todos entrarem e pendurarem casacos e malas, começa a procura por um sítio para sentar. Neste open space, em que a sala e a cozinha se encontram, um sofá e umas quantas cadeiras, pufes e cadeirões viram-se de frente para uma mesa no meio da sala, na qual está pousado um monitor. Atrás, nos estores das janelas, é projectado o vídeo de uma câmara que está apontada para o público, ora sentado, ora de pé junto à ilha da cozinha ou da parede que vai dar ao corredor da casa. E então começa a primeira performance.

Teatro Quadrado
DR

Desde o momento em que sabem que foram escolhidos até ao dia em que vão actuar, os artistas têm cerca de duas  semanas. Alguns sabem de antemão o que vão fazer, outros utilizam esse tempo para criar algo novo. Apesar de todas as edições seguirem um tema, não é obrigatório que os artistas o sigam também. E, ao longo destas semanas, o Teatro Quadrado promove encontros entre quem se apresenta e quem dá a casa, que estabelece as regras no que toca às performances. Enquanto uns deixam todas as portas de casa abertas, outros podem querer que se circule apenas em espaços comuns. Os mais criativos podem até exigir que cada performer tenha de criar algo consoante condições específicas – como poder apenas utilizar a banheira.

Andreia Matos, de 25 anos, é a anfitriã desta última noite, e o que mais gosta é de ver como estes encontros mudam a sua casa. “Gosto de ver como as pessoas mudam as coisas e como o espaço se transforma em cada performance, várias vezes numa noite. Vivo e trabalho aqui, durmo aqui, fico farta, mas agora vejo-a com olhos diferentes”, diz. E para o público, o facto das performances acontecerem em casas particulares gera um conjunto de possibilidades que dificilmente haveria num outro lugar. “Se temos muitos problemas no mundo da arte, aqui parece que a arte é nossa e não de quem quer que a faça”, acredita Diogo Fernandes, 23, que já veio a mais do que uma edição.

É tipo um laboratório experimental

À medida que cada performance termina, vão sendo anunciados curtos intervalos. Servem principalmente para preparar o espaço para quem tomará o palco de seguida. A mobília é a primeira a mudar de  sítio. Arrastam-se sofás e cadeiras, retiram- se mesas e criam-se cenários improvisados,  com lenços coloridos por cima de lâmpadas, papéis amachucados no chão ou projecções na parede. Aqui, as pessoas podem mostrar curtas-metragens, dar um concerto, interpretar um monólogo ou um solo de dança. Vale tudo – até os erros. Para os artistas é isso que torna este espaço seguro e alheio a julgamentos.

“Todo o mundo sente que é um espaço seguro. Por ser na casa das pessoas cria uma intimidade maior e todo o mundo que vem assistir já sabe qual é a vibe. Em outros lugares, mais institucionalizados, você passa por um julgamento prévio e a pressão se torna maior. Eu estava bem tranquila, porque sabia que seria acolhida de qualquer maneira”, conta Malu Lopes, 25 anos, já depois de ter interpretado, sentada na cozinha, um texto autobiográfico. Mariana Lopes, também de 25 anos, é autora da performance final, em que o desvelar foi palavra de ordem, e concorda. “Quis participar porque queria errar e queria testar coisas. Senti que este sítio era para virmos experimentar, o que é sempre algo fixe.”

Teatro Quadrado
João Amador

Ora para performers como Eduardo Cal, 23 anos, que tocou na guitarra uma composição própria para um grupo de pessoas pela primeira vez, ou Afonso Branco, 21, que nos mostrou um filme sobre o seu interesse pela dança, ora para quem está do lado do público, como António Vouga, 22 anos, que já se tornou frequentador habitual do Teatro Quadrado, importa ter este espaço para experimentar. “Há lugar para o erro aqui, o que é extremamente necessário para tudo o que seja criar coisas no geral. E o espaço em si permite explorar coisas completamente novas, que nunca vimos, porque é impossível explorar certas coisas que estão a acontecer aqui num teatro”, afirma António.

Como tudo começou

Esta foi, aliás, a ideia central que levou Marine Arradon, actriz de 24 anos licenciada em teatro, a dar início ao projecto. Quando ainda vivia em França, ficou a saber do Festival T3 – Théâtre Tout le Temps, que operava dentro dos mesmos moldes do Teatro Quadrado, mas com menos abertura para pessoas que estavam a dar os primeiros passos no mundo artístico. Quis então fazer algo dentro do mesmo género, mas ainda assim diferente. Em 2022 deu-se a primeira edição.

“O que é engraçado é que entraram logo pessoas que queriam dar casa ou actuar. Pessoas que não conhecíamos de lado nenhum e que estavam curiosas. Achei isso incrível, não conhecendo ninguém do projecto, ofereciam a sua casa. E, pouco a pouco, percebemos que havia pessoas que ficavam de uma edição para a outra”, conta Marine, já no final da noite. Para organizar o projecto, chamou a amiga Beatriz Catarino, a quem mais tarde, se juntaram Rita Ruivo, de 22 anos, Beatriz Carola, 21, Maria Luís Resende, 25, e Leonor Vasques Alves, 22. “Isto é tudo o que a arte deve ser. Não há dinheiro envolvido e não tens expectativas nenhumas porque não sabes que coisas vens ver. E são de pessoas que não sabes quem são e que vêm de todos os níveis, que já estudaram [teatro], que ainda estão a estudar, ou que nunca fizeram nada”, explica Leonor, que antes de entrar na organização, frequentou os encontros.

E se para este grupo de amantes/artistas/ estudantes do teatro, a arte vive nessa criação livre de julgamentos, de questões a responder ou de requisitos necessários para cumprir um programa curatorial, também vive na comunidade que a faz e que a quer partilhar com os outros. “Queremos que  eles se conheçam, que trabalhem juntos, que saibam do trabalho uns dos outros, que desabafem sobre as dificuldades do freelancing em Portugal”, realça Beatriz Catarino. “Nesta edição tivemos 22 artistas. Entre as 22 pessoas, se alguém precisar de um balde, um projector, não há ninguém que tenha? Alguém tem, porque temos esta filosofia de que, durante este período, o que é meu é teu e todos partilhamos estes recursos”, exemplifica.

Ora se actua, ora se assiste

Os encontros constroem-se de forma a que toda a gente possa ser anfitriã, performer e público numa só edição, se assim o desejar. É exemplo disso Mariana Sardinha, 25 anos, que esta noite está apenas a assistir, mas no dia anterior esteve a actuar. “Está tudo misturado. Os artistas são o público da próxima pessoa a actuar. Podes ir falar com eles e perguntar como é que surgiu [a criação] e como é que fizeram. Há uma troca muito mais fácil”, garante Francisco Azevedo, de 28 anos, na sua primeira vez como espectador no Teatro Quadrado. À saída, já tem vontade de ser um dos anfitriões da próxima edição.

Teatro Quadrado
João AmadorSétima edição do Teatro Quadrado

No fundo, o Teatro Quadrado acaba por ser um grande convívio. Já que não se paga entrada, todos são convidados a levar comida e bebida, à qual se vai recorrendo várias vezes ao longo dos intervalos. Quer seja à volta da ilha da cozinha, preenchida de copos e pratos, no terraço, ou sentadas no sofá, as cerca de 30 pessoas vão movimentando-se, trocando de posições, conhecendo pessoas novas ou reconhecendo caras familiares. Não fica espaço para constrangimentos nem para formalidades. Não estamos na plateia de um teatro, estamos, antes, “em conjunto, a alterar o espaço onde se faz a arte”, considera Ana Saboeira, de 27 anos, que está aqui também pela primeira vez. É, acima de tudo, desta maneira que Beatriz Catarino, Beatriz Carola, Marine, Maria, Leonor e Rita esperam continuar a fazer este projecto. Apesar de não ter uma periodicidade regular, o grupo conta avançar com a oitava edição do Teatro Quadrado nos próximos meses. Para o futuro, fica a vontade de tornar o projecto mais inclusivo, no que toca a ter intérpretes de Língua Gestual Portuguesa e acessos a pessoas de cadeiras de rodas, e de crescer, talvez a partir da candidatura a apoios. Mas o principal não mudará, garantem. É a esta casa que elas retornam sempre.

Instagram: @teatroquadrado

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